segunda-feira, 28 de outubro de 2019

Sobre fins

Nem sempre a primeira impressão é a que fica, mas é inegável que ela tem um impacto importante quando se trata de um livro. Nesse ponto, começo a resenha destacando não o trabalho do autor - que comentarei em seguida - mas do capista. André Ximene é o artista responsável pela capa do livro "Cotovelo e outras dores", de Heitor Gomes, e eu optei por começar exaltando esse profissional porque a capa é de uma genialidade ímpar.



Um saco de lixo no formato de um coração. O nome do livro já traz em si uma pitada do que vem pela frente: dor de cotovelo, mas a ideia de fim de relacionamento poderia ser representada de várias outras formas bem mais conhecidas (e clichês) como corações partidos, mãos separadas ou coisas do estilo. O uso do saco de lixo foi uma representação simbólica muito interessante ao demonstrar de forma gráfica e criativa todo o sentimento de todos os narradores ao longo do livro sendo descartados como lixo.

Já dizia Paulo Coelho que todas as histórias de amor são iguais - desconfio que a frase pode não ser dele, mas todas as referências que encontrei foram creditadas a ele - e Heitor explorou bem a ideia de que todo o fim de relacionamento deixa mágoas semelhantes. Por um lado demonstra que sentimentos humanos independem da sexualidade (os narradores são todos homens homossexuais) e a dor de um rompimento é igual para todos, por outro torna a leitura do livro de um só fôlego cansativa, exatamente pelo teor aproximado das histórias.

O ideal, nesse caso, seria uma leitura a conta-gotas, já que são várias histórias, mas meu trabalho com resenha não permite esse formato. A leitura direta realmente acaba por transformar esse conjunto de histórias em um bloco quase homogêneo do homem que perdeu seu amor. Cabe frisar que aqui não faço juízo de valores sobre isso ser ruim ou não. O romance meloso, a dor da perda, a "dor de cotovelo" são temas que figuram na nossa literatura desde sempre e jamais deixaram de conquistar legiões de fãs. Pelo contrário, histórias de amor ainda estão entre as histórias favoritas do grande público.

A mistura de contos e poesias me deixou curiosa sobre a classificação do livro na ficha catalográfica e fui surpreendida pela designação de "crônicas" para o livro. A parte ruim é que não encontrei nenhum texto do gênero na obra toda, a parte boa é que me senti impelida a buscar mais conhecimento sobre o mesmo para tentar compreender o motivo de tal classificação; sei que conto e crônica são gêneros que por vezes podem mesmo causar confusão.

O primeiro conto da obra, "Mordido", inicia o conjunto em um tom mais sombrio, a putrefação do coração partido, trazendo toda a dramaticidade típica da prosa poética em um texto curto, mas impactante.

O conto Fim, por sua vez, traz frases curtas, ansiosas, em um bloco contínuo de texto sem separação de parágrafos e interrompido no meio de uma frase, demonstrando uma boa dose de desespero do narrador, fôlego curto, quase uma tentativa de despejar todo seu sentimento sem permitir que seu receptor tenha a chance de uma réplica - e de fato não o tem.

Seguindo adiante no livro, fica perceptível que o bloco único de texto, as frases curtas, o narrador ansioso que busca monopolizar a conversa a ponto de promover completamente o apagamento do receptor é, na verdade, um estilo comum explorado pelo autor, sendo quebrado por raros textos e pelas poesias distribuídas ao longo da obra, trazendo não apenas narradores em sofrimento com relacionamentos falidos, mas homens inseguros, ansiosos, agitados. O bloco único, sem separação de parágrafo, é um recurso que, na palavra oral, representaria um texto sendo dito em alta velocidade, com clara intenção de não permitir interrupções. Simbolicamente é um recurso interessante, especialmente se considerando que o autor é dramaturgo e atua com teatro; já seu uso na literatura, conforme o tamanho do texto, pode se tornar um risco. Em alguns textos compensa, em outros não.

O conto "Textão", por sua vez, explora uma linguagem inusitada ao ser toda construída sobre um "textão" que o rapaz envia, via whatsapp, ao seu ex, com quem tinha esperança de reatar. Embora não tenha sido segredo até então que os narradores dos demais contos são homens gays, esse é o primeiro que escancara. Para além da forma de aplicativo de mensagem, o conto em questão também demonstra fortemente o público para o qual o livro é destinado: um público mais jovem que esteja mais focado em temas como relacionamentos e corações partidos. Esse é o primeiro livro nessa linha temática e para esse tipo de público que resenho nesse espaço. 

Já em "Tricobezoares" temos o primeiro contraste da obra, onde o autor quase chega a explorar um tema que, apesar de tabu, tem sido alvo de debates recentemente: automutilação. Existe ali uma sutil pesquisa e um ensaio para um aprofundamento do tema, mas ele não chega a acontecer. Inicialmente me decepcionei que o conto termina quando parece que o autor vai começar a explorar um tema mais profundo, mais denso, mas depois, até a finalização da obra, entendi que nem caberia no livro um conto que adentrasse no subconsciente do personagem, que explorasse de forma tão dolorosa seu sofrimento psíquico em um universo repleto de narradores com dores comuns ou até mesmo demonstrando um certo grau de birra.

Sim, os narradores de Heitor sofrem. Sofrem a dor da perda do relacionamento como qualquer ser humano. Nem todo livro precisa ser um tratado filosófico sobre psicologia humana, exatamente por isso um conto que fosse a fundo em um narrador com prática de automutilação destoaria demais. Manteve a coerência.

Somente na página 60, no conto "Calmaria", temos a primeira quebra no padrão de bloco de texto, com separação de parágrafos. O título já é autoexplicativo: temos um narrador menos ansioso, que não precisa atropelar o leitor para dizer tudo o que está sentindo com pressa.

Ato de Fé, por sua vez, foi um conto que me deixou um tanto incomodada. Não foi o único conto em que Heitor trouxe símbolos religiosos - inclusive o fez de formas bem depreciativas mais pra frente - e não o julgo quando critica (não é o caso desse) considerando a perseguição que LGBT's sofrem por algumas religiões, em especial algumas de origem cristã no Brasil. O que me incomoda no conto, na verdade, é a mistura de entidades de várias religiões de matriz africana - extremamente perseguida, estigmatizada e vítima de desinformação e violência - para fins de mais um conto sobre relacionamento. Talvez seja puritanismo ou exagero de minha parte, mas justamente por vivermos em um país tão intolerante com as religiões de matriz africana, acho preocupante quando seus símbolos são usados de forma tão aleatória, já que o conto é, no fim das contas, uma grande brincadeira a ponto de citar, junto com orixás e santos de várias religiões, personalidades como Johnny Hooker, Maria Padilha e Maria Bethânia.

Claro que é um caso de mera opinião pessoal; talvez muitos de seus leitores achem esse o conto mais divertido do livro exatamente pela mistureba que o autor faz. Eu não sou seguidora de nenhuma dessas religiões, mas conheço suas culturas.

Chegando na reta final do livro, o autor nos surpreende com um conto inteiro sem uma única pontuação. Nadinha. Três páginas de uma única frase sem uma única vírgula. Esforço louvável. Quebra de expectativa, já que o padrão do autor até então eram frases curtas; porém, aqui ele nos traz um narrados ainda mais evidentemente ansioso, elétrico, talvez até um tanto quanto entorpecido.

Outra característica evidente no conto seguinte é o uso corriqueiro do horóscopo e as gírias do universo LGBT que me lembram os memes de RuPaul. Neste e no conto do aplicativo de mensagem essas gírias estão extremamente carregadas e forma quase caricata, embora sejam realmente presentes no vocabulário das pessoas que inspiraram o autor ou até mesmo do próprio autor. É um dos muitos conceitos de tribos urbanas, com seus próprios códigos de linguagem que funciona muito bem no livro.

Chegando ao final do livro, o autor nos surpreende mais uma vez. Ou duas. Primeiro com "Bicheira", um conto pesado, esse sim, mesmo curto, se aprofundando mais no retrato da decadência humana, e "Terça-feira gorda" que, embora esteja em um livro quase que inteiramente dedicado a falar de relacionamentos, é o primeiro com um teor mais explicitamente erótico - não erótico de fato, mas o que chega mais perto disso.

"Cotovelo e outras dores" contrasta bastante com os livros que já trabalhei neste blog. Não por não ser um livro com profundidade filosófica porque primeiro que isso é uma bobagem porque dá pra contar grandes histórias sem falar difícil e já resenhei outros livros com histórias simples, mas porque ele tem um público-alvo bastante específico - como foram, por exemplo, os livros policial e de ficção científica que também resenhei. Certamente um público jovem adulto, interessado nas mazelas dos relacionamentos, encontrará nesse livro uma boa dose de diversão.
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Cotovelo e outras dores
Heitor Gomes

Giostri: São Paulo, 2019
120 páginas
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Heitor Gomes é ator formado pela Escola de Arte Dramática, é graduando em Pedagogia pelo Centro Universitário SENAC, professor de Teatro no SENAC e dramaturgo.

~Maya

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