quarta-feira, 30 de outubro de 2019

Que se prove o contrário

Mônica Ribeiro, ou simplesmente Mô, vive em conflito consigo mesma sobre ser ou não escritora. Na verdade esse conflito não é exatamente incomum e atinge uma parcela grande de bons escritores. A contraposição é a infeliz realidade da gigantesca fatia de péssimos juntadores de letrinhas que não somente se dizem grandes escritores como se sentem dignos de um Nobel.

O fato é que Mô sofre de perfeccionismo agudo, um ponto extremo que a impede de reconhecer a qualidade do próprio trabalho. Então solto o meu veredito de resenhista, jornalista, leitora e escritora: Mô escreve, e escreve bem.

Agora é a vez de vocês conhecerem o trabalho dela. Mô é escritora até que se prove o contrário.

Ampulheta
quantos pontos
são necessários
para estancar
o sangue
de quem se corta
com os cacos
da ampulheta?
quantas pinças
são necessárias
para tirar
do sangue
a areia do tempo
que escapou
da ampulheta quebrada?
quantos anos
sofridos
são necessários
para que não se quebre
a ampulheta?
a ampulheta
é por si
torta, trincada
mal lacrada, vazada.
________________________

Eu chovi

mas já passou.
Ainda não atingi o
índice pluviométrico do
descanso mental.
_________________________

Fotogênesis
A minha fotografia mente
o meu olhar.
Não há as corrugas
do chapisco,
nem sequer a cor que vejo
dos riscos que contam
da chuva que choveu.
Não há fidelidade
na oxidação fotografada.
A câmera não mostra o ar que
belamente
pintou sardas no metal
que parece o telhado
sustentar.
Será?
Será que sustenta?
Os verdumes?
Deles nem falo.
Minha fotografia?
É mentira pro meu olhar.
Talvez um dia eu possa aprender
A fotogenar.
Já que não sei fotografar
uma nuvem gigante traça um plano cinza-escuro no céu.
acima, o breu e a lua:
ela adornada com seu halo também plúmbeo
ela partida ao meio.
algumas estrelas
. talvez mortas, para mim vivas .
fazem a escolta
falsa imóvel.
a terra gira
mas tudo parece parado.
apenas meus cabelos e as plantas e minha saia provam
que o ar hoje quis correr.
sob o pseudônimo vento
ele canta
com seu timbre indefinível.
________________________________

Mônica Ribeiro é mineira, perfeccionista e vive em constante batalha contra si mesma nesse mundo insano que nos convence o tempo todo que os doentes somos nós.

~Maya

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segunda-feira, 28 de outubro de 2019

Sobre fins

Nem sempre a primeira impressão é a que fica, mas é inegável que ela tem um impacto importante quando se trata de um livro. Nesse ponto, começo a resenha destacando não o trabalho do autor - que comentarei em seguida - mas do capista. André Ximene é o artista responsável pela capa do livro "Cotovelo e outras dores", de Heitor Gomes, e eu optei por começar exaltando esse profissional porque a capa é de uma genialidade ímpar.



Um saco de lixo no formato de um coração. O nome do livro já traz em si uma pitada do que vem pela frente: dor de cotovelo, mas a ideia de fim de relacionamento poderia ser representada de várias outras formas bem mais conhecidas (e clichês) como corações partidos, mãos separadas ou coisas do estilo. O uso do saco de lixo foi uma representação simbólica muito interessante ao demonstrar de forma gráfica e criativa todo o sentimento de todos os narradores ao longo do livro sendo descartados como lixo.

Já dizia Paulo Coelho que todas as histórias de amor são iguais - desconfio que a frase pode não ser dele, mas todas as referências que encontrei foram creditadas a ele - e Heitor explorou bem a ideia de que todo o fim de relacionamento deixa mágoas semelhantes. Por um lado demonstra que sentimentos humanos independem da sexualidade (os narradores são todos homens homossexuais) e a dor de um rompimento é igual para todos, por outro torna a leitura do livro de um só fôlego cansativa, exatamente pelo teor aproximado das histórias.

O ideal, nesse caso, seria uma leitura a conta-gotas, já que são várias histórias, mas meu trabalho com resenha não permite esse formato. A leitura direta realmente acaba por transformar esse conjunto de histórias em um bloco quase homogêneo do homem que perdeu seu amor. Cabe frisar que aqui não faço juízo de valores sobre isso ser ruim ou não. O romance meloso, a dor da perda, a "dor de cotovelo" são temas que figuram na nossa literatura desde sempre e jamais deixaram de conquistar legiões de fãs. Pelo contrário, histórias de amor ainda estão entre as histórias favoritas do grande público.

A mistura de contos e poesias me deixou curiosa sobre a classificação do livro na ficha catalográfica e fui surpreendida pela designação de "crônicas" para o livro. A parte ruim é que não encontrei nenhum texto do gênero na obra toda, a parte boa é que me senti impelida a buscar mais conhecimento sobre o mesmo para tentar compreender o motivo de tal classificação; sei que conto e crônica são gêneros que por vezes podem mesmo causar confusão.

O primeiro conto da obra, "Mordido", inicia o conjunto em um tom mais sombrio, a putrefação do coração partido, trazendo toda a dramaticidade típica da prosa poética em um texto curto, mas impactante.

O conto Fim, por sua vez, traz frases curtas, ansiosas, em um bloco contínuo de texto sem separação de parágrafos e interrompido no meio de uma frase, demonstrando uma boa dose de desespero do narrador, fôlego curto, quase uma tentativa de despejar todo seu sentimento sem permitir que seu receptor tenha a chance de uma réplica - e de fato não o tem.

Seguindo adiante no livro, fica perceptível que o bloco único de texto, as frases curtas, o narrador ansioso que busca monopolizar a conversa a ponto de promover completamente o apagamento do receptor é, na verdade, um estilo comum explorado pelo autor, sendo quebrado por raros textos e pelas poesias distribuídas ao longo da obra, trazendo não apenas narradores em sofrimento com relacionamentos falidos, mas homens inseguros, ansiosos, agitados. O bloco único, sem separação de parágrafo, é um recurso que, na palavra oral, representaria um texto sendo dito em alta velocidade, com clara intenção de não permitir interrupções. Simbolicamente é um recurso interessante, especialmente se considerando que o autor é dramaturgo e atua com teatro; já seu uso na literatura, conforme o tamanho do texto, pode se tornar um risco. Em alguns textos compensa, em outros não.

O conto "Textão", por sua vez, explora uma linguagem inusitada ao ser toda construída sobre um "textão" que o rapaz envia, via whatsapp, ao seu ex, com quem tinha esperança de reatar. Embora não tenha sido segredo até então que os narradores dos demais contos são homens gays, esse é o primeiro que escancara. Para além da forma de aplicativo de mensagem, o conto em questão também demonstra fortemente o público para o qual o livro é destinado: um público mais jovem que esteja mais focado em temas como relacionamentos e corações partidos. Esse é o primeiro livro nessa linha temática e para esse tipo de público que resenho nesse espaço. 

Já em "Tricobezoares" temos o primeiro contraste da obra, onde o autor quase chega a explorar um tema que, apesar de tabu, tem sido alvo de debates recentemente: automutilação. Existe ali uma sutil pesquisa e um ensaio para um aprofundamento do tema, mas ele não chega a acontecer. Inicialmente me decepcionei que o conto termina quando parece que o autor vai começar a explorar um tema mais profundo, mais denso, mas depois, até a finalização da obra, entendi que nem caberia no livro um conto que adentrasse no subconsciente do personagem, que explorasse de forma tão dolorosa seu sofrimento psíquico em um universo repleto de narradores com dores comuns ou até mesmo demonstrando um certo grau de birra.

Sim, os narradores de Heitor sofrem. Sofrem a dor da perda do relacionamento como qualquer ser humano. Nem todo livro precisa ser um tratado filosófico sobre psicologia humana, exatamente por isso um conto que fosse a fundo em um narrador com prática de automutilação destoaria demais. Manteve a coerência.

Somente na página 60, no conto "Calmaria", temos a primeira quebra no padrão de bloco de texto, com separação de parágrafos. O título já é autoexplicativo: temos um narrador menos ansioso, que não precisa atropelar o leitor para dizer tudo o que está sentindo com pressa.

Ato de Fé, por sua vez, foi um conto que me deixou um tanto incomodada. Não foi o único conto em que Heitor trouxe símbolos religiosos - inclusive o fez de formas bem depreciativas mais pra frente - e não o julgo quando critica (não é o caso desse) considerando a perseguição que LGBT's sofrem por algumas religiões, em especial algumas de origem cristã no Brasil. O que me incomoda no conto, na verdade, é a mistura de entidades de várias religiões de matriz africana - extremamente perseguida, estigmatizada e vítima de desinformação e violência - para fins de mais um conto sobre relacionamento. Talvez seja puritanismo ou exagero de minha parte, mas justamente por vivermos em um país tão intolerante com as religiões de matriz africana, acho preocupante quando seus símbolos são usados de forma tão aleatória, já que o conto é, no fim das contas, uma grande brincadeira a ponto de citar, junto com orixás e santos de várias religiões, personalidades como Johnny Hooker, Maria Padilha e Maria Bethânia.

Claro que é um caso de mera opinião pessoal; talvez muitos de seus leitores achem esse o conto mais divertido do livro exatamente pela mistureba que o autor faz. Eu não sou seguidora de nenhuma dessas religiões, mas conheço suas culturas.

Chegando na reta final do livro, o autor nos surpreende com um conto inteiro sem uma única pontuação. Nadinha. Três páginas de uma única frase sem uma única vírgula. Esforço louvável. Quebra de expectativa, já que o padrão do autor até então eram frases curtas; porém, aqui ele nos traz um narrados ainda mais evidentemente ansioso, elétrico, talvez até um tanto quanto entorpecido.

Outra característica evidente no conto seguinte é o uso corriqueiro do horóscopo e as gírias do universo LGBT que me lembram os memes de RuPaul. Neste e no conto do aplicativo de mensagem essas gírias estão extremamente carregadas e forma quase caricata, embora sejam realmente presentes no vocabulário das pessoas que inspiraram o autor ou até mesmo do próprio autor. É um dos muitos conceitos de tribos urbanas, com seus próprios códigos de linguagem que funciona muito bem no livro.

Chegando ao final do livro, o autor nos surpreende mais uma vez. Ou duas. Primeiro com "Bicheira", um conto pesado, esse sim, mesmo curto, se aprofundando mais no retrato da decadência humana, e "Terça-feira gorda" que, embora esteja em um livro quase que inteiramente dedicado a falar de relacionamentos, é o primeiro com um teor mais explicitamente erótico - não erótico de fato, mas o que chega mais perto disso.

"Cotovelo e outras dores" contrasta bastante com os livros que já trabalhei neste blog. Não por não ser um livro com profundidade filosófica porque primeiro que isso é uma bobagem porque dá pra contar grandes histórias sem falar difícil e já resenhei outros livros com histórias simples, mas porque ele tem um público-alvo bastante específico - como foram, por exemplo, os livros policial e de ficção científica que também resenhei. Certamente um público jovem adulto, interessado nas mazelas dos relacionamentos, encontrará nesse livro uma boa dose de diversão.
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Cotovelo e outras dores
Heitor Gomes

Giostri: São Paulo, 2019
120 páginas
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Heitor Gomes é ator formado pela Escola de Arte Dramática, é graduando em Pedagogia pelo Centro Universitário SENAC, professor de Teatro no SENAC e dramaturgo.

~Maya

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sábado, 26 de outubro de 2019

De volta à casa

Milhares de pessoas por esse imenso Brasil tão diverso escondem em gavetas e HD's pequenas obras-primas que se recusam entregar ao mundo sabe-se por qual motivo. É nossa obrigação respeitar o direito de cada um de se manter oculto na multidão, não há dúvida, mas a literatura cresce quando esses pequenos tesouros são revelados.

É por essa razão (também) que o Bibliofilia existe: você não precisa ter pretensões literárias gigantescas, não precisa correr atrás de editora, cobiçar grandes prêmios, calcular direitos autorais, mas nada te impede de presentar o mundo com o seu talento.

Digo isso porque vemos prateleiras abarrotadas de livros de qualidade duvidável nas livrarias que revelam egos infladíssimos de autores medíocres (e sim, claro, vemos um sem número de grandes obras e excelentes autores. Calma, autor publicado, não é necessariamente de você que estou falando), ao mesmo tempo que vemos gente extraordinária escondida por aí, ou por falta de oportunidade, ou por desejo de anonimado ou por um desejo de anonimato fabricado pela desilusão de uma carreira bem sucedida.

Não sei em qual dessas categorias Carlos Figueiredo se encaixa, mas sei que ele é um desses que temos que puxar pela mão e levar até o público para que nos honre com seus escritos. Por isso é uma alegria imensa trazer ao Bibliofilia Cotidiana, mais uma vez, o trabalho de Carlos. Dessa vez, apresento a vocês 6 poemas do autor sob curadoria de sua esposa, a poeta Mell Renault.

Deliciem-se!

Esqueleto

Trago nos ossos
um cálcio lilás
e mais
a primavera que me agita.
Trago nos ossos
o cálcio dos inquietos
e na garganta
um inseto que me limita.
Trago nos ossos
o cálcio dos indigentes
e a fratura exposta
que me habita.
Trago nos ossos
o cálcio dos confusos
e o pecado
da minha alma aflita.
Trago nos ossos
o cálcio dos mortos
e um silêncio escuro
que me irrita.

 ______________________ 

Confessionário

O limo devora o muro
cada viga e todo osso.
Confesso segredos
no fosso do cimento
- palavras claras -
meu mais puro lamento
esse
sei que fica
não na alma pálida
do muro
e sim
na arte lenta
desse limo.
  
_______________________

Caminhada

Revela tudo a ruga
até chegar o barro
carvão
entrar na caverna
saber do osso
da pele
e da pedra
sabão.
Esconder o espírito
fugir
da mente
flores mortas
de uma outra estação.
Beber tambores
para derramar na fonte
da garganta eterna,
bater caminhos
longe das dores
e do gosto estranho
de cores banais.
E nunca
- nunca mais -
saber voltar.

________________________

Asilo

Corrompe rugas
minha cara
torturada de grisalho
na poeira do armário
- no ranger da porta -
nivelado no calço
puído
da memória
morta.

________________________ 


Animal

À margem do sono
lobo na alma
corro sem corpo
louco
caçando calma.

________________________ 

  
Ciclo

Todo homem é eterno
não do pó ao pó
mas do ventre ao verme.
Renascerá parasita
e rastejará
para roer outras peles.
Até que mil vermes fartos
- sua prole -
se aglomere
e gere novos partos.

_____________________________________________

Vamos querer mais de Carlos Figueiredo por aqui no futuro?
Vamos. Vamos sim. E como vamos.

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Carlos Figueiredo é escritor. Carioca, tem 50 anos, cinco filhos e é casado com a escritora Mell Renault. Com formação em cinema e fotografia, dirige atualmente uma produtora de book trailer. Nas artes plásticas pinta telas e ilustra livros.

~Maya


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quinta-feira, 24 de outubro de 2019

Além do tempo

Delalves Costa já esteve por aqui com alguns textos avulsos. Em seguida do envio deles, recebi seu livro "Extemporâneo", que por acaso será lançado nesse sábado (26.10.2019) na Patuscada, em São Paulo. Trata-se de um livro de poesias publicado pela Coralina que já traz na capa um clima outonal reforçado em alguns de seus poemas. Delalves, este ano, está tendo motivos de sobra para celebrações; além do lançamento de seu livro, ainda se tornou Patrono da Feira do Livro de sua terra natal, Osório.


Indo do geral para o específico, Delalves tem um estilo bastante particular de fazer poesia; em diversos de seus poemas os versos são quebrados para uma continuação na linha de baixo. Não é um estilo inédito, mas também não é comum. Geralmente poetas optam por deixar cada ideia em seu verso para garantir que o leitor leia o verso da maneira planejada pelo poeta, o estilo adotado por Delalves deixa o leitor mais livre para construir o poema, em sua leitura, da maneira que o preferir. É um mérito, mas ao mesmo tempo, um risco; um leitor que respeite o respiro entre versos poderá encontrar dificuldades de se entender dentro do poema.

Esse comentário não é, de forma alguma, uma crítica - até porque não faço crítica, faço resenha - não tenho por função debater licença poética nem questionar o estilo de cada autor. Delalves tem consistência e se coloca fiel a quem ele é, o que mostra que seu trabalho poético não é mera experimentação ou uma paixão passageira. Isso, inclusive, é posto de forma explícita no primeiro poema, finalizado com "para os olhos que morrem / ao ver o mundo sem poesia".

A abertura do livro, a partir de Efêmero, carrega um tom mais claro, mais autoexplicativo e não tão simbólico quanto o que encontramos mais para o final. O poema O Relógio, por exemplo, apresenta uma crítica contundente à pressa, à mecanização da vida, à modernidade que substitui o sentimento humano pelas engrenagens, a carne pelo metal. O próprio poema, em suas vísceras metafóricas, transmite a ideia de frieza, de mecanicidade, da troca da vida pela eletricidade.

O poema seguinte, Tempos de Solidão, segue a mesma onda de crítica, dessa vez apontando o isolamento que toda essa troca do que é humano por máquina nos provoca. A troca da voz e do contato real pelos algoritmos, pelos códigos binários. As paisagens pelas telas. As conexões mudam de significado.

Até esse ponto do livro vemos uma relação perfeitamente entrelaçada onde a vida se esvazia na ausência de poesia enquanto o eletrônico substitui a carne e a tecnologia promove a solidão. Como vimos na própria capa do livro e temos, mais adiante poemas ligados ao outono, talvez seja aí que comece de faço a estação monocromática.

Extemporâneo é aquilo que se manifesta fora do tempo previsto. Nem tudo era pra ser outono, mas se torna. O ciclo da vida é afetado pelos restos deixados por aquilo que se diz e se considera civilização.

Passados os primeiros poemas, o grau de complexidade das metáforas usadas por Delalves aumenta, já não sendo mais tão escancaradas suas críticas, não deixando, entretanto, de estar presentes. Em Maria e José e a Família, o poeta expõe a rotina maçante como se os elementos comuns dessa rotina já fossem parte até do organismo dessas pessoas, as quais a combatem e a vencem, se recusando a serem escravas do relógio. Ao fim, dizendo de Maria, já grávida, como engravidada outra vez, vê-se a metáfora de uma nova vida - venceu-se. A segunda gravidez não é de um filho literal, mas uma nova vida para a família inteira, libertos.

A ideia da liberdade é justamente o que inicia o poema seguinte, "Onde está o humano, meu Deus", em que o poeta inicia com "Pessoa, liberte-me de mim. Pois / quem estou não basta". Já nessa quase metade do livro até o fim, Delalves explora recursos de duplicidade de palavras através do uso de parênteses, como o faz com dois poemas de nomes semelhantes: "A G(estação)" e "As G(estações)". O recurso é pouco visto no início do livro e bastante explorado até seu final, não sei se por coincidência ou por escolha estética do autor.

Outro poema que explora essa estética logo no título é "Desventur(a - viva morte)", certamente aqui com finalidade unicamente visual. O poema, entretanto, se propõe a expôr a dualidade de vida e morte entre os espinhos e a suavidade das pétalas de uma rosa. De início, apresenta um elemento do nosso folclore através da citação do cravo, remetendo à canção do cravo e a rosa, que, por sua vez, faz clara alusão a violência doméstica.

Se aprofundarmos o olhar sobre esse poema, a dualidade de vida e morte aqui exposto não precisa ser necessariamente o concreto, a morte efetivamente consumada, mas a morte simbólica provocada pela ferida, pelo despedaçamento emocional, como um "morrer" em vida.

Pouco adiante, Delalves retoma a crítica aos tempos modernos no poema "O Trágico de Os - o rio e o braço-morto", cuja primeira parte do poema expõe o narcisismo glorificado pela internet, "Efêmero, o tal Post sapiens / idolatra-se nulo; é face / quer status, não pensa, / língua emudecendo estrela. / Da tela aplaude o grito / e cala-se, logo inexiste".

Como um ciclo correndo para um fechamento, depois de retomar a crítica aos tempos modernos, Delalves resgata a paixão pela escrita em uma metáfora quase violenta entra a paixão da escrita e o prazer sexual, no contraste entre a dor e o orgasmo, o sofrimento e o êxtase.

Embora pequeno, Extemporâneo não é um livro simples. Tem um estilo e uma estética única, confesso que ficou, ao final da leitura, a curiosidade de saber quais são as influências de Delalves Costa. É sempre construtivo conhecer trabalhos que fogem da nossa zona de conforto, o trabalho do autor com certeza é um exemplo disso.
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Extemporâneo
Delalves Costa

Editora Coralina: Cachoeira do Sul, 2019
58 páginas
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Delalves Costa é um poeta gaúcho de Osório com 7 livros publicados e participação em diversas antologias e revistas literárias. É membro e sócio-fundador da Academia dos Escritores do Litoral Norte e atua como professor de português, literatura e texto técnico na rede estadual.

~Maya


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segunda-feira, 21 de outubro de 2019

A sublime arte de ouvir “não”


Poucos são os exemplos (se é que existem) de autores que jamais ouviram um “não” de uma editora, uma revista ou um concurso literário. O não, feliz ou infelizmente, é parte da jornada, não só da vida de qualquer escritor, mas de qualquer pessoa.

Na literatura muitos motivos podem resultar em uma negativa por parte de uma editora, que pode ir de incompatibilidade com a linha editorial da empresa até má qualidade do texto. Sim, nem sempre somos tão bons quanto imaginamos, e é aí que entra a parte mais crítica do processo.

A frustração é natural, ninguém gosta de ser recusado. Principalmente: ninguém gosta de ser recusado e passa a achar que tudo o que a editora que recusou publica é muito ruim e, portanto, você é a pessoa mais injustiçada do planeta. Sim, sim, essa raivinha que você começa a alimentar dos que foram aprovados pela editora também é parte do processo de luto pela recusa do seu trabalho.

Luto sim, é uma perda. Geralmente – e digo geralmente porque não ouso afirmar que é assim com todos – quem escreve um livro e o submete a uma editora, o faz com uma boa dose de carinho, dedicação e cria, mesmo que sem querer, uma série de sonhos ao redor daquela publicação. Daí vem o não.

Alguns reagem com autodepreciação, se achando os piores autores do planeta quando de repente sequer foi realmente a qualidade do texto que pesou na recusa. Outros reagem de forma violenta, não aceitam de jeito nenhum que alguém ouse dizer não ao seu bebê e passam a tratar a editora e todos os seus autores como inimigos. Outros apenas seguem em frente, revisam o livro, tentam outros caminhos. Geralmente esses últimos são aqueles que já levaram nãos o bastante pra saber que não é o fim do mundo, nem da linha, nem da carreira, nem dos sonhos.

Ninguém espera que uma recusa seja recebida com alegria; é um direito do recusado se sentir desanimado ou revoltado com o resultado de sua tentativa, mas esse sentimento precisa ser passageiro. Remoer a recusa ajuda em vários nadas para dar o passo seguinte, que pode ser desde uma revisão do livro à escolha de outra editora com um perfil editorial mais adequado ao seu trabalho.

É nesse segundo ponto que entram muitos dos casos de recusa, inclusive. Não adianta enviar um livro de poesia romântica para uma editora voltada à prosa de terror ou buscar uma editora de autopublicação sem ter dinheiro para investir; esses são casos de recusa certa independente da qualidade do seu material. Uma editora focada em prosa dificilmente publicará poesia, uma editora com viés estritamente comercial dificilmente publicará um livro com menor potencial de vendas mesmo que seu conteúdo seja brilhante, uma editora focada em públicos específicos não publicará livros voltados para outros públicos. As vezes, também, está tudo certo, seu trabalho e a editora parecem formar um par perfeito mas as condições do momento, do mercado, da demanda, da sociedade, acabam por melar o casamento.

Pare, pense e reflita: você enviou para uma editora com um perfil editorial que combina com o seu trabalho? Sua narrativa usa uma linguagem que combina com o público que você pretende atingir? Seu texto possui coesão, coerência, verossimilhança e personagens tridimensionais? Sua história possui amarras que, mesmo que você use um estilo não linear, o leitor ainda saberá que está lendo o mesmo livro do começo ao fim?

Acredite, o “não” pode ser uma boa oportunidade de repensar alguns caminhos, nem que seja de qual selo queremos na capa do nosso livro se ainda não estivermos prontos para a autocrítica – por sinal, cada dia mais fundamental e nem sempre presente. É importante ressaltar que erramos sim. Todos. Editores dispensam livros ótimos todos os dias, autores entopem as caixas de entrada de editoras com livros medíocres todos os dias. Estamos todos sujeitos ao erro. O editor mais experiente pode deixar escapar um potencial grande nome da literatura e um grande nome da literatura pode escrever um livro horrível no auge da sua carreira.

A grande questão é que vivemos na era dos egos, de todos os lados. Temos sim, claro, editores que pisam nos sonhos de autores de forma muitas vezes até cruel (aconteceu comigo, por sinal, já tem um tempo, me recuso a expor nomes), e temos também gente sem nenhum preparo, nenhum interesse no aprimoramento da escrita, nenhuma vontade de aprender, que só quer ter seu nome estampado na capa de um ou de muitos e muitos livros, e acha que isso deve ser o bastante, sendo obrigação das editoras aprovar sua obra.

Não é assim que a vida funciona. Não é assim que o mercado editorial funciona. Começa que nem tudo é justo e tem sim muita gente boa se ferrando sem oportunidade e muita gente nhé se dando bem, no mundo inteiro, em todas as áreas. Sabemos que as coisas são assim, mas não é esperneando que a coisa se resolver.

Fundamental é viver de cabeça erguida e fazer a sua parte. Talvez o editor que disse não está errado e sua obra é incrivelmente maravilhosa, talvez ele esteja certo e sua obra precisa ser revista, talvez não bateu o santo e outro editor vai gostar do seu material, mas seja qual for a explicação para o seu “não”, a melhor saída será sempre dar uma olhada a mais, continuar buscando conhecimento (como já dizia o icônico ET Bilu), lendo muito, buscando opiniões de terceiros, praticando.

A literatura é de uma subjetividade absurda. Podemos acertar a mão em uma obra e errar feio na outra. Quando resenho livros de contos ou poesias aqui no blog, é normal ter uma porcentagem mínima de textos do livro que destoam dos demais. Não teve um único romance que eu resenhei que não achei algum furo na história. E posso garantir que acontece o mesmo com os meus livros, porque escritores não são robôs e a perfeição nas artes é uma questão de ponto de vista. Ter textos que não gostei entre poesias e contos ou pequenos furos nas narrativas longas não mudou minha percepção da qualidade das obras porque é NORMAL.

Como é normal, NORMAL, ser recusado.

Portas fecham, portas abrem. Portas só permanecem fechadas para quem fica esperneando do lado de fora. Levanta, sacode a poeira e vai atrás de seus sonhos onde eles forem bem-vindos.


~Maya


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sexta-feira, 18 de outubro de 2019

Anti-minimalismo

Nada contra o clichê, o previsível, às vezes fazemos uma leitura de relaxamento querendo que nas próximas páginas esteja exatamente o que a gente espera que esteja. Bom, definitivamente não é o caso do livro "Lente de aumento para coisas grandes", de Sabrina Dalbelo.



Passamos a vida ouvindo que devemos dar valor às pequenas coisas, os pequenos gestos, os pequenos momentos, uma hipervalorização do minimalismo. Na contramão do microsentimentalismo, Sabrina inverte o óbvio e traz à tona o valor das grandes coisas. Das coisas gigantescas.

Justamente movida por essa ideia de que tudo o que é belo e sublime - e que deve ser valorizado - é pequeno que julguei que o livro de Sabrina seria uma sátira, talvez uma grande brincadeira com coisas materialmente grandes, até pelo título, afinal, quem precisa de lente de aumento para ver algo grande?

E então, durante a leitura, descobri que precisamos mesmo. Talvez até de um chacoalhão.

Sabrina não inventou a roda em seu livro. Nem transformou tudo em uma grande piada. Nem fez uma sátira com objetos grandes. Ela apenas subverteu a lógica do minimalismo. E fez muito mais sentido. A valorização das pequenas coisas virou a valorização das coisas grandes sob a ponta da caneta de Sabrina. A amizade não é algo pequeno, o amor não é algo pequeno, o nascer do sol não é algo pequeno. São grandes, são gigantes, e passam despercebidos, ou passam como as "pequenas coisas da vida", daí a ideia de lente de aumento.

Já que estamos falando de lente, o livro é dividido em quatro focos: a observação, o barulho, a descoberta e a identificação das coisas grandes.

Da valorização do pequeno, observamos os grandes que:
- o carinho cura
- a desigualdade fere
- o amor basta
- a saudade preenche
- o empoderamento completa
- o amor não é concreto
- o maior poder é o respeito
- falhar não é feio
- o corpo suporta uma vida bem vivida
- coisas boas acontecem quando nos permitimos
- velhice prefere o que é verdadeiro
- o que permanece das pessoas é o amor que existiu
- amizade é aquela que te guia
- existem coisas que não podem ser explicadas

Grande também é o lirismo que Sabrina emprega na sua observação; "não parece mas / há caridade / em doar saudade / a um coração vazio".

Também há crítica no seu trocadilho "ofensa / rima com crença / não por nada". O poema em questão se chama "rima pobre" e posso até concorda que o seja, mas nesses três pequenos versos há um significado gigante em um momento social tão crítico onde grupos religiosos ameaçam direitos civis de populações inteiras em um Estado que deveria ser laico.

Esse poema é um retrato simbólico bastante adequado para o livro como um todo - não o único, por óbvio - mas é um poema extremamente curto, três versos, poucas palavras e - nas palavras da própria autora - rima pobre - mas com um significado que transcende a página, a obra e essa resenha.

É o reflexo da antítese, do anti-minimalismo a que se propõe o livro, enxergar o grande a partir daquilo que se considera pequeno, e o livro tem grande êxito nessa missão, caprichando ainda mais nas negativas do poema "teoria da relatividade das coisas", que começa com "pouco amor não é falta de amor" e segue com uma série de exemplo de coisas que nem sempre são o que julgamos ser, como "aperto de mão forte não é cumprimento leal", "ter uma bíblia debaixo do braço não santifica ninguém", "cair não é para os cabelos" e termina com "não exclusivamente".

Relativiza o pequeno, relativiza o valor, relativiza as coisas.

E segue para o barulho das coisas, onde:
- o conto de fadas pode virar violência
- o sorriso ao indigente faz bem para os dois
- conexão olho no olho tem mais alcance que internet
- a vida é feita de mortes
- quem mais grita é quem tem menos a dizer
- falar difícil não significa ter conteúdo

Assim como a gente não percebe que o germinar de uma flor entre as pedras de uma calçada é um processo gigante de superação de uma semente e considera que apreciar a flor, já viva, é uma das pequenas coisas boas da vida, também não nos damos conta que, na vida miserável daqueles renegados pelo sistema, à margem da sociedade, um sorriso é muito mais do que um sorriso, é um sentimento de reinclusão.

Como dizer que esse sorriso é algo pequeno? Parece um gesto pequeno, contrair músculos do rosto para que os lábios fiquem arqueados. Simples, claro, mas para aquele que recebe o sorriso, esse gesto vai muito além, talvez seja até impossível de ser explicado. Precisamos dessa lente de aumento para que possamos enxergar o quão gigante é resgatar a dignidade de um ser humano com um sorriso.

Sabrina segue, denuncia, faz ela mesma o barulho. Diz ela "eu moro no subúrbio / da literatura" em denúncia a um elitismo que vem sendo combatido, mas que ainda se faz presente nos meios literários e afasta das livrarias e saraus as pessoas mais simples, quando sabemos que existe muita história e poesia às margens da dita elite intelectual. Por sinal, alguns dos maiores pesquisadores de literatura que conheço vieram de fora dessa tal elite. O mesmo posso dizer de tantos e tantas poetas que vêm ganhando cada vez mais espaço - e merecidíssimo espaço - pela qualidade de seu trabalho.

Sabrina também descobre as coisas grandes. Descobrimos juntas que
- enxergar é mais do que apenas ver
- tristeza afeta a visão
- um dia é um ciclo completo da vida
- simplicidade pode ser muita coisa
- ou tudo aquilo que é mais difícil definir, como
"o sapato sujo / conta sobre a estrada / não sobre os passos dados"

A gente se descobre nas coisas grandes, como a importância do partir, não apenas para encarar o desconhecido, mas para ter de onde voltar. Ou que o crescimento vai muito além das mudanças do corpo, mas da força imposta pela própria vida.

E quando chegamos na identificação das coisas grandes, Sabrina arrebata com uma apresentação direta de tudo aquilo que nem sempre prestamos atenção.
"- Quem é você? - perguntou ao abuso sexual.
- Sou um bloco de montar que não se encaixa nas outras peças. Não me importo, forço, nem que as quebre."

Há espaço para seriedade, há espaço para brincadeira:
"- Quem é você? - perguntou à rebeldia.
Ela saiu esbravejando, colocou uma placa de 'não perturbe' na porta e nunca respondeu."

"Lente de aumento para coisas grandes" me surpreendeu, não pela qualidade porque isso eu já esperava de Sabrina, mas pela quebra da expectativa sobre o tema. Fazer enxergar o gigantesco oculto no falso minimalismo. Jamais tinha parado para refletir sobre isso. A obra transcendeu à poesia nela impressa. É uma boa reflexão nesses tempos corridos onde temos que nos forçar a lembrar de admirar um pôr do sol vez ou outra para sobreviver ao caos. E o pôr do sol não é algo pequeno, nada pequeno.

Nada nesse livro é pequeno, nem o menor de seus versos.
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Lente de aumento para coisas grandes
Sabrina Dalbelo

Penalux: Guaratinguetá, 2018
113 páginas
Destaque para ilustrações de Eduardo Sussumo Smozono
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Sabrina Dalbelo é gaúcha, servidora do Ministério Público Federal e apaixonada por poesia, já tendo participado de antologias e publicado diversos de seus textos em páginas virtuais.

~Maya


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segunda-feira, 14 de outubro de 2019

Musicalidade concreta

Este blog, sempre tão movimentado, viveu seus dias de silêncio. Mas o motivo foi nobre: passei alguns dias sem acesso ao meu computador por causa da pilha de livros que se acumulou sobre minha escrivaninha enquanto meu tempo na Feira do Livro local me impedia de organizar a biblioteca. A coisa por aqui ainda não está 100%, mas o bastante para retomar nosso espaço literário.

Nesse período ausente, a leitura foi do livro "Um sol para cada montanha", uma coletânea poética de Andri Carvão, um querido amigo que conheci ainda ano passado e tive a honra de contar com sua presença no lançamento do meu último livro, em São Paulo. Na reportagem que fiz para este blog na ocasião de minha formatura em jornalismo, Andri, como um dos entrevistados entre os poetas com publicação independente, comentou que a escolha do modelo não foi bem uma escolha, mas uma falta de alternativa, já que não tinha conseguido uma editora para a publicação do seu primeiro livro.

Atualmente, Andri já está em processo de edição de outras obras com contratos assinados. Não conheço o conteúdo das obras em questão, mas depois da leitura de "Um sol para cada montanha", ficou claro pra mim o motivo das dificuldades de Andri em publicar essa obra específica: o movimento ao qual boa parte de seus poemas pertencem.



Andri, uma mistura de poeta com artista plástico, nos apresenta a mais pura poesia concreta. Uma poesia visual que mistura elementos diversos, formas, rimas e repetições de palavras, versos que, a um olhar rápido parecem idênticos mas não o são. 

A poesia concreta foi um movimento de vanguarda, com um caráter experimental, que colocou o universo literário de pernas pro ar com a quebra do poema lírico com o uso de uma linguagem visual. Seu grande marco no Brasil foi a partir da década de 1950, como herança dos modernistas, em especial do trabalho de Oswald de Andrade. Embora o movimento tenha deixado nomes de peso como herdeiros do estilo, não é uma poesia de fácil leitura ou fácil aceitação comercial, daí a dificuldade de publicação para um autor desconhecido.

A forma como Andri trabalhou seus versos na obra, e em especial na segunda parte que é integralmente de poesia visual é uma herança direta do legado da Semana de Arte Moderna de 1922, demonstrando que mesmo que o poeta tenha abandonado as artes visuais para abraçar a literatura, as artes visuais abraçaram sua literatura junto.

Me chamou a atenção, entretanto, o texto introdutório do livro, onde Andri conta um pouco de como surgiu a obra, deixando claro pra mim que o autor tem jeito pra uma prosa poética de qualidade. Relata uma adolescência problemática e o quanto esse livro é fruto justamente desse enfrentamento de uma realidade delicada. Talvez exatamente por isso alguns poemas tenham esses ares mais imaturos, talvez um tanto viscerais de quem está usando o papel e a caneta como arma de sobrevivência. A imaturidade aqui não é um demérito; nada que contribua com uma jornada comprometida com o crescimento é demérito.

Seus problemas trazidos à tona em versos começam a se tornar evidentes no poema "autorretrato com cara de paisagem", onde Andri demonstra claramente problemas de autoimagem, "O espelho é o oposto / do meu rosto". 

A partir do poema "duas quadras", percebi uma tendência que permaneceria durante toda a terceira parte do livro, composta de versos mais densos, poesias mais longas e, digamos, revoltas: existe uma musicalidade latente em seus poemas. Consigo imaginar facilmente uma banda de rock adaptando vários de seus poemas para os ritmos típicos dos anos 80 com refrões que grudam e rimas que repetimos 30 anos depois.

Além do aspecto concretista/visual e da musicalidade de seus poemas, também percebi que Andri conta histórias em alguns de seus poemas, que poderiam ser facilmente transformados em prosa. Como o texto introdutório demonstrou sua capacidade para a prosa, fico curiosa de ver como Andri adaptaria essas mesmas poesias em contos. Algo me diz que ficariam muito bons.

A partir daí tivemos características bastante pontuais no trabalho de Andri que merecem destaque. O poema "funerária & pintura" por exemplo compara de forma magistral grandes obras de pintura dos maiores nomes das artes de todos os tempos com poesia. Comparar não seria o termo ideal, mas perseguir, como Andri diz, em outras palavras. Todas as artes buscam a poesia, de uma forma ou de outra, formalmente ou não. Vejo sentido nisso.

Certamente esse poema poderia render uma discussão de horas com aqueles que acham que não gostam de poesia porque poesia é o gênero mais incompreendido das artes, o mais complexo de se julgar, o que mais depende de mil aspectos pessoais do leitor para conquista-lo. E apesar disso, o mais presente em todas as manifestações.

De forma pontual, meu poema favorito é disparado o poema "réquiem", o qual deixo a vocês na voz da poeta Mell Renault e produção de Carlos Figueiredo, da Cine Book:



Em termos gerais, a obra de Andri reflete com força a influência das artes visuais e concretas que ele traz de sua formação, trabalhando muito o jogo de palavras pela sua sonoridade ou forma, buscando um conjunto cuja harmonia nem sempre é o foco, como quando busca demonstrar sua revolta com problemas sociais através de poemas que incomodam, que causam desconforto em seus trocadilhos propositalmente trabalhados pra trazer mal-estar.

É uma obra de formação, de um poeta inconformado, de um artista que enxerga e transporta poesia para a forma, que transforma letra em desenho e desenho em palavra.
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Um sol para cada montanha
Andri Carvão

Chiado. São Paulo, 2018.
193 páginas
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Andri Carvão cursou Artes Plásticas na Escola de Arte Fego Camargo, em Taubaté, na Fundação das Artes de São Caetano do Sul e na EPA - Escola Panamericana de Arte (SP). Participou de diversas antologias, revistas e saraus literários e atualmente é graduando em Letras pela USP.

~Maya


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quarta-feira, 9 de outubro de 2019

Alucinógeno

Acompanhei com alegria o nascimento da editora Caos & Letras e o lançamento, mesmo à distância, do livro de contos "Estados Alucinatórios", de Eduardo Sabino. Já de imediato a capa inusitada me chamou a atenção. Com o livro na mão também observei a qualidade de todo o projeto gráfico, porque sim, isso conta. Quando se trata de uma editora tradicional, com história de mercado, um livro bem diagramado e bem impresso é o mínimo que se espera; de uma editora nova é quase um atestado de "ok, estamos prontos para publicar". É nitidamente o caso da Caos & Letras.


Embora o título e a capa já nos avisem que será um encontro com histórias com um pé no universo fantástico, nem se tivesse um texto introdutório explicando a proposta do livro chegaríamos nele realmente preparados para as surpresas que Eduardo nos preparou. Nem sempre uma narrativa contém algum significado escondido, uma metáfora, uma lição, uma mensagem edificante em suas entrelinhas, as vezes uma narrativa é apenas uma história a ser degustada, e não posso afirmar qual dos casos se enquadra nas histórias que Eduardo nos conta em Estados Alucinatórios, mas o fato é que encontrei muita coisa em histórias que misturam realismo e fantasia (ou absurdo) em narrativas incrivelmente bem desenvolvidas.

O livro começa já com uma história inusitada: Samuel é um jovem que conviveu quase a vida toda com um demônio no corpo. Longe de ser uma história de terror, é uma história com toques cômicos e repleta de metáforas. Achei simplista concluir que poderia se tratar de um amigo imaginário ou até mesmo reduzir a narrativa a uma mensagem sobre os "demônios interiores", embora isso se faça presente quando o demônio que habita Samuel influencia seu comportamento o suficiente para prejudicar alguns aspectos da sua vida.

Mas o demônio, de certa forma, também representa consciência, como uma companhia, a voz da razão e da perdição em um único ser acompanhando um garoto até então solitário. De tão solitário, o rapaz se torna amigo de seu demônio, provocando um desfecho tão hilário quanto triste, dependendo o ponto de vista.

Já de imediato, o primeiro conto me chamou a atenção exatamente pela já mencionada qualidade narrativa. Eduardo não se utiliza de recursos poéticos, que geralmente trazem elementos mais dramáticos e que, pessoalmente, me agradam muito, nem explora de forma escancarada o escracho, o cômico. É a ironia fina, de entrelinha, que conduz suas narrativas. E não somente do primeiro conto, mas praticamente do livro inteiro, fazendo com que as histórias trabalhem tanto o drama quanto o humor sem explorar recursos de forma forçada. É tudo muito natural.

Isso grita ainda mais ao olhos quando conhecemos o homem que adotou um crocodilo. Junior, o crocodilo, é, como qualquer outro crocodilo, um predador. Mas é um predador tal qual o homem, e, por isso, embora homem e crocodilo estejam distantes em formas físicas - o crocodilo vive em um aquário - se aproximam enquanto predadores. Mas não só isso, o narrador, "pai" de Junior, o ensina a falar e o presenteia com uma televisão, trazendo, em uma história que parece sem cabimento - um homem tratando como filho um crocodilo que fala, um debate atual: manipulação midiática.

Dias e dias exposto à influência da mídia, da televisão ligada o dia todo como sua única diversão fazem com que Junior, o "filho", deseje "caçar" um comunista. E aí o narrador se vale de todo tipo de estereótipo para atender os desejos do "filho" - ironizando a ideia de um "pai de pet", afinal, nesse caso, ele efetivamente educa, cria e alimenta o animal. O fato de o pai planejar a caçada para atender ao desejo selvagem do crocodilo de devorar um comunista devido ao ódio do animal criado pela influência da mídia mostram o quanto a selvageria de ambos não está muito distante.

De todo o livro, entretanto, meu conto favorito é "Blattaria". A verdade é que gostei do livro todo, teve um ou dois contos que não me impressionaram tanto quanto os outros embora não tenha deixado de gostar por isso, mas "Blattaria" me arrebatou. Além da narrativa fascinante que prende a atenção do início ao fim, de uma história extremamente bem contada, o final do conto não apenas me levou aos prantos como me obrigou a largar o livro por alguns minutos e ficar olhando pras paredes até assimilar o que tinha acabado de ler.

Por óbvio não vou contar o final do conto, mas a história relata a rotina insana de uma família de quatro pessoas, sendo pai, mãe e duas crianças - a mais velha é a narradora - residindo em uma casa muito antiga que sofre com a infestação de baratas. A narradora estuda as baratas, descobre as espécies e ela, o irmão pequeno e a mãe, entram em uma guerra com os insetos que é interrompida pelo pai, que inicia uma estranha relação de afeição pelos bichos.

Inusitado, sem dúvida. Muito bem escrito, como os demais. Justamente por se tratar de um livro de mexe com o fantástico, que traz o improvável para a realidade palpável, li o conto tentando adivinhar o que poderia acontecer com essa família. Se tornaria o pai um rei das baratas? Seria "Blattaria" uma releitura contemporânea de "A Metamorfose", de Kafka? Tudo era possível, e nada me preparou para o verdadeiro desfecho. Aplausos a Eduardo, que certamente previu que o leitor esperaria um final apoteótico e nos estapeou as fuças de forma extremamente competente. "Blatteria" entra para minha lista de contos favoritos, não do livro, da vida.

Mas claro que não para por aí, estamos só na página 73 de um livro de 200 páginas. O conto seguinte, "Um sonho chinês", não ficou pra trás no quesito qualidade narrativa. O grande destaque nesse conto - e que merece menção honrosa no meu ranking de melhores contos - é a criatividade do autor. Na história, o narrador sofre com algum distúrbio que o impede de se manter acordado muito tempo. Enquanto dorme, ele passa a viver a vida de outra pessoa, um rapaz chinês. A coisa é tão doida, tão inesperada, que eu fiquei mais tempo imaginando o que se passou na cabeça do autor enquanto escrevia esse conto do que efetivamente navegando por ele.

Já em "Pessoa Física", retomamos as metáforas explorando o mundo consumista onde literalmente as marcas fazem a festa enquanto o homem vive de pagar as contas. O que mais fascina nesse conto é a literalidade da metáfora, acho que nunca tinha visto uma metáfora ser usada de forma tão literal - capacidade de exploração do universo fantástico definitivamente é um mérito incontestável de Eduardo.

O mesmo acontece em "Ofertório". A narração aplicada nesse conto é uma ferramenta poderosa no efeito que ele causa no leitor, já que o narrador responde a terceiros mas não temos as vozes desses terceiros. Os motivos também fazem parte do próprio tema do conto: os terceiros são os pecadores que serão sacrificados em purificação de seus pecados através da encenação de famosas passagens bíblicas. Como pecadores, embora o narrador interaja com eles, eles não têm voz. O "não ter voz" não é literal dentro do conto, já que o narrador os escuta, mas o autor priva o leitor de escuta-los, garantindo que sua voz não seja ouvida e essa ideia da ausência de seus direitos por serem "inimigos" do poder vigente fique evidente. Estratégia brilhante. E claro, conto chocante, explorando a hipocrisia de um fanatismo altamente letal.

O último conto que vou tecer comentários aqui, até para que vocês também possam descobrir os demais por conta própria é o único que foge 100% da realidade, já que narra a história de uma família de porcos. Da realidade palpável, mas não metafórica, já que os porcos, no conto, tomaram o lugar dos homens, considerados uma raça inferior e extinta. De imediato me remeteu à Revolução dos Bichos, de George Orwell, embora não tenha muita relação direta uma história com a outra. Entretanto, o simbolismo que se usa do animal porco me faz crer que a escolha deste para a família do conto de Eduardo não tenha sido em vão (e triste, porque porcos mesmo são animais dóceis).

Já nas primeiras linhas do conto, ficou claro que o conto, onde um dos leitões começa a demonstrar trejeitos humanos, o que é visto como uma aberração pela sociedade porca, é na verdade uma metáfora com a homossexualidade. Até mesmo a forma depreciativa com que o pai porco descreve a sensibilidade de seu filho é semelhante ao que vemos homofóbicos falando de homossexuais. O autor ainda escolhe o termo "homossapientes" para descrever os porcos humanizados. Ok, sabemos que o termo se refere à espécie humana, homo sapiens, mas a escolha foi providencial para uma associação mais direta.

As grandes marcas de Estados Alucinatórios são, sem dúvida, a capacidade narrativa e a criatividade do autor. Começamos cada conto sem fazer ideia de pra onde ele vai nos conduzir, ou de onde ele tirou uma ideia dessas, e somos levados por toda a história de forma suave, quase sem perceber. Apelidei esse tipo de narrativa de "leitura escorregadia"; não há pedras no caminho, a leitura flui e, quando você menos espera, chega ao desfecho. Um livro fascinante tanto por histórias divertidas quanto por metáforas muito bem construídas, narradores fortes, situações inusitadas e reflexões. E alucinações, porque essa também é a ideia.
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Estados Alucinatórios
Eduardo Sabino

Caos & Letras: Nova Lima, 2019
200 páginas
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Eduardo Sabino nasceu em Nova Lima, Minas Gerais, em 1986. É autor dos livros de contos Naufrágio entre Amigos (Patuá, 2016) e Ideias Noturnas sobre a Grandeza dos Dias (Novo Século, 2009) e recebeu o prêmio Brasil em Prosa 2015 pelo conto "Sombras".

~Maya


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Finaleira

Esse é o último post desse blog. CALMA, NÃO PRECISA DESMAIAR! Não, o Bibliofilia não acabou! O causo é que no finalzinho de outubro, mais...