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segunda-feira, 28 de outubro de 2019

Sobre fins

Nem sempre a primeira impressão é a que fica, mas é inegável que ela tem um impacto importante quando se trata de um livro. Nesse ponto, começo a resenha destacando não o trabalho do autor - que comentarei em seguida - mas do capista. André Ximene é o artista responsável pela capa do livro "Cotovelo e outras dores", de Heitor Gomes, e eu optei por começar exaltando esse profissional porque a capa é de uma genialidade ímpar.



Um saco de lixo no formato de um coração. O nome do livro já traz em si uma pitada do que vem pela frente: dor de cotovelo, mas a ideia de fim de relacionamento poderia ser representada de várias outras formas bem mais conhecidas (e clichês) como corações partidos, mãos separadas ou coisas do estilo. O uso do saco de lixo foi uma representação simbólica muito interessante ao demonstrar de forma gráfica e criativa todo o sentimento de todos os narradores ao longo do livro sendo descartados como lixo.

Já dizia Paulo Coelho que todas as histórias de amor são iguais - desconfio que a frase pode não ser dele, mas todas as referências que encontrei foram creditadas a ele - e Heitor explorou bem a ideia de que todo o fim de relacionamento deixa mágoas semelhantes. Por um lado demonstra que sentimentos humanos independem da sexualidade (os narradores são todos homens homossexuais) e a dor de um rompimento é igual para todos, por outro torna a leitura do livro de um só fôlego cansativa, exatamente pelo teor aproximado das histórias.

O ideal, nesse caso, seria uma leitura a conta-gotas, já que são várias histórias, mas meu trabalho com resenha não permite esse formato. A leitura direta realmente acaba por transformar esse conjunto de histórias em um bloco quase homogêneo do homem que perdeu seu amor. Cabe frisar que aqui não faço juízo de valores sobre isso ser ruim ou não. O romance meloso, a dor da perda, a "dor de cotovelo" são temas que figuram na nossa literatura desde sempre e jamais deixaram de conquistar legiões de fãs. Pelo contrário, histórias de amor ainda estão entre as histórias favoritas do grande público.

A mistura de contos e poesias me deixou curiosa sobre a classificação do livro na ficha catalográfica e fui surpreendida pela designação de "crônicas" para o livro. A parte ruim é que não encontrei nenhum texto do gênero na obra toda, a parte boa é que me senti impelida a buscar mais conhecimento sobre o mesmo para tentar compreender o motivo de tal classificação; sei que conto e crônica são gêneros que por vezes podem mesmo causar confusão.

O primeiro conto da obra, "Mordido", inicia o conjunto em um tom mais sombrio, a putrefação do coração partido, trazendo toda a dramaticidade típica da prosa poética em um texto curto, mas impactante.

O conto Fim, por sua vez, traz frases curtas, ansiosas, em um bloco contínuo de texto sem separação de parágrafos e interrompido no meio de uma frase, demonstrando uma boa dose de desespero do narrador, fôlego curto, quase uma tentativa de despejar todo seu sentimento sem permitir que seu receptor tenha a chance de uma réplica - e de fato não o tem.

Seguindo adiante no livro, fica perceptível que o bloco único de texto, as frases curtas, o narrador ansioso que busca monopolizar a conversa a ponto de promover completamente o apagamento do receptor é, na verdade, um estilo comum explorado pelo autor, sendo quebrado por raros textos e pelas poesias distribuídas ao longo da obra, trazendo não apenas narradores em sofrimento com relacionamentos falidos, mas homens inseguros, ansiosos, agitados. O bloco único, sem separação de parágrafo, é um recurso que, na palavra oral, representaria um texto sendo dito em alta velocidade, com clara intenção de não permitir interrupções. Simbolicamente é um recurso interessante, especialmente se considerando que o autor é dramaturgo e atua com teatro; já seu uso na literatura, conforme o tamanho do texto, pode se tornar um risco. Em alguns textos compensa, em outros não.

O conto "Textão", por sua vez, explora uma linguagem inusitada ao ser toda construída sobre um "textão" que o rapaz envia, via whatsapp, ao seu ex, com quem tinha esperança de reatar. Embora não tenha sido segredo até então que os narradores dos demais contos são homens gays, esse é o primeiro que escancara. Para além da forma de aplicativo de mensagem, o conto em questão também demonstra fortemente o público para o qual o livro é destinado: um público mais jovem que esteja mais focado em temas como relacionamentos e corações partidos. Esse é o primeiro livro nessa linha temática e para esse tipo de público que resenho nesse espaço. 

Já em "Tricobezoares" temos o primeiro contraste da obra, onde o autor quase chega a explorar um tema que, apesar de tabu, tem sido alvo de debates recentemente: automutilação. Existe ali uma sutil pesquisa e um ensaio para um aprofundamento do tema, mas ele não chega a acontecer. Inicialmente me decepcionei que o conto termina quando parece que o autor vai começar a explorar um tema mais profundo, mais denso, mas depois, até a finalização da obra, entendi que nem caberia no livro um conto que adentrasse no subconsciente do personagem, que explorasse de forma tão dolorosa seu sofrimento psíquico em um universo repleto de narradores com dores comuns ou até mesmo demonstrando um certo grau de birra.

Sim, os narradores de Heitor sofrem. Sofrem a dor da perda do relacionamento como qualquer ser humano. Nem todo livro precisa ser um tratado filosófico sobre psicologia humana, exatamente por isso um conto que fosse a fundo em um narrador com prática de automutilação destoaria demais. Manteve a coerência.

Somente na página 60, no conto "Calmaria", temos a primeira quebra no padrão de bloco de texto, com separação de parágrafos. O título já é autoexplicativo: temos um narrador menos ansioso, que não precisa atropelar o leitor para dizer tudo o que está sentindo com pressa.

Ato de Fé, por sua vez, foi um conto que me deixou um tanto incomodada. Não foi o único conto em que Heitor trouxe símbolos religiosos - inclusive o fez de formas bem depreciativas mais pra frente - e não o julgo quando critica (não é o caso desse) considerando a perseguição que LGBT's sofrem por algumas religiões, em especial algumas de origem cristã no Brasil. O que me incomoda no conto, na verdade, é a mistura de entidades de várias religiões de matriz africana - extremamente perseguida, estigmatizada e vítima de desinformação e violência - para fins de mais um conto sobre relacionamento. Talvez seja puritanismo ou exagero de minha parte, mas justamente por vivermos em um país tão intolerante com as religiões de matriz africana, acho preocupante quando seus símbolos são usados de forma tão aleatória, já que o conto é, no fim das contas, uma grande brincadeira a ponto de citar, junto com orixás e santos de várias religiões, personalidades como Johnny Hooker, Maria Padilha e Maria Bethânia.

Claro que é um caso de mera opinião pessoal; talvez muitos de seus leitores achem esse o conto mais divertido do livro exatamente pela mistureba que o autor faz. Eu não sou seguidora de nenhuma dessas religiões, mas conheço suas culturas.

Chegando na reta final do livro, o autor nos surpreende com um conto inteiro sem uma única pontuação. Nadinha. Três páginas de uma única frase sem uma única vírgula. Esforço louvável. Quebra de expectativa, já que o padrão do autor até então eram frases curtas; porém, aqui ele nos traz um narrados ainda mais evidentemente ansioso, elétrico, talvez até um tanto quanto entorpecido.

Outra característica evidente no conto seguinte é o uso corriqueiro do horóscopo e as gírias do universo LGBT que me lembram os memes de RuPaul. Neste e no conto do aplicativo de mensagem essas gírias estão extremamente carregadas e forma quase caricata, embora sejam realmente presentes no vocabulário das pessoas que inspiraram o autor ou até mesmo do próprio autor. É um dos muitos conceitos de tribos urbanas, com seus próprios códigos de linguagem que funciona muito bem no livro.

Chegando ao final do livro, o autor nos surpreende mais uma vez. Ou duas. Primeiro com "Bicheira", um conto pesado, esse sim, mesmo curto, se aprofundando mais no retrato da decadência humana, e "Terça-feira gorda" que, embora esteja em um livro quase que inteiramente dedicado a falar de relacionamentos, é o primeiro com um teor mais explicitamente erótico - não erótico de fato, mas o que chega mais perto disso.

"Cotovelo e outras dores" contrasta bastante com os livros que já trabalhei neste blog. Não por não ser um livro com profundidade filosófica porque primeiro que isso é uma bobagem porque dá pra contar grandes histórias sem falar difícil e já resenhei outros livros com histórias simples, mas porque ele tem um público-alvo bastante específico - como foram, por exemplo, os livros policial e de ficção científica que também resenhei. Certamente um público jovem adulto, interessado nas mazelas dos relacionamentos, encontrará nesse livro uma boa dose de diversão.
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Cotovelo e outras dores
Heitor Gomes

Giostri: São Paulo, 2019
120 páginas
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Heitor Gomes é ator formado pela Escola de Arte Dramática, é graduando em Pedagogia pelo Centro Universitário SENAC, professor de Teatro no SENAC e dramaturgo.

~Maya

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quinta-feira, 24 de outubro de 2019

Além do tempo

Delalves Costa já esteve por aqui com alguns textos avulsos. Em seguida do envio deles, recebi seu livro "Extemporâneo", que por acaso será lançado nesse sábado (26.10.2019) na Patuscada, em São Paulo. Trata-se de um livro de poesias publicado pela Coralina que já traz na capa um clima outonal reforçado em alguns de seus poemas. Delalves, este ano, está tendo motivos de sobra para celebrações; além do lançamento de seu livro, ainda se tornou Patrono da Feira do Livro de sua terra natal, Osório.


Indo do geral para o específico, Delalves tem um estilo bastante particular de fazer poesia; em diversos de seus poemas os versos são quebrados para uma continuação na linha de baixo. Não é um estilo inédito, mas também não é comum. Geralmente poetas optam por deixar cada ideia em seu verso para garantir que o leitor leia o verso da maneira planejada pelo poeta, o estilo adotado por Delalves deixa o leitor mais livre para construir o poema, em sua leitura, da maneira que o preferir. É um mérito, mas ao mesmo tempo, um risco; um leitor que respeite o respiro entre versos poderá encontrar dificuldades de se entender dentro do poema.

Esse comentário não é, de forma alguma, uma crítica - até porque não faço crítica, faço resenha - não tenho por função debater licença poética nem questionar o estilo de cada autor. Delalves tem consistência e se coloca fiel a quem ele é, o que mostra que seu trabalho poético não é mera experimentação ou uma paixão passageira. Isso, inclusive, é posto de forma explícita no primeiro poema, finalizado com "para os olhos que morrem / ao ver o mundo sem poesia".

A abertura do livro, a partir de Efêmero, carrega um tom mais claro, mais autoexplicativo e não tão simbólico quanto o que encontramos mais para o final. O poema O Relógio, por exemplo, apresenta uma crítica contundente à pressa, à mecanização da vida, à modernidade que substitui o sentimento humano pelas engrenagens, a carne pelo metal. O próprio poema, em suas vísceras metafóricas, transmite a ideia de frieza, de mecanicidade, da troca da vida pela eletricidade.

O poema seguinte, Tempos de Solidão, segue a mesma onda de crítica, dessa vez apontando o isolamento que toda essa troca do que é humano por máquina nos provoca. A troca da voz e do contato real pelos algoritmos, pelos códigos binários. As paisagens pelas telas. As conexões mudam de significado.

Até esse ponto do livro vemos uma relação perfeitamente entrelaçada onde a vida se esvazia na ausência de poesia enquanto o eletrônico substitui a carne e a tecnologia promove a solidão. Como vimos na própria capa do livro e temos, mais adiante poemas ligados ao outono, talvez seja aí que comece de faço a estação monocromática.

Extemporâneo é aquilo que se manifesta fora do tempo previsto. Nem tudo era pra ser outono, mas se torna. O ciclo da vida é afetado pelos restos deixados por aquilo que se diz e se considera civilização.

Passados os primeiros poemas, o grau de complexidade das metáforas usadas por Delalves aumenta, já não sendo mais tão escancaradas suas críticas, não deixando, entretanto, de estar presentes. Em Maria e José e a Família, o poeta expõe a rotina maçante como se os elementos comuns dessa rotina já fossem parte até do organismo dessas pessoas, as quais a combatem e a vencem, se recusando a serem escravas do relógio. Ao fim, dizendo de Maria, já grávida, como engravidada outra vez, vê-se a metáfora de uma nova vida - venceu-se. A segunda gravidez não é de um filho literal, mas uma nova vida para a família inteira, libertos.

A ideia da liberdade é justamente o que inicia o poema seguinte, "Onde está o humano, meu Deus", em que o poeta inicia com "Pessoa, liberte-me de mim. Pois / quem estou não basta". Já nessa quase metade do livro até o fim, Delalves explora recursos de duplicidade de palavras através do uso de parênteses, como o faz com dois poemas de nomes semelhantes: "A G(estação)" e "As G(estações)". O recurso é pouco visto no início do livro e bastante explorado até seu final, não sei se por coincidência ou por escolha estética do autor.

Outro poema que explora essa estética logo no título é "Desventur(a - viva morte)", certamente aqui com finalidade unicamente visual. O poema, entretanto, se propõe a expôr a dualidade de vida e morte entre os espinhos e a suavidade das pétalas de uma rosa. De início, apresenta um elemento do nosso folclore através da citação do cravo, remetendo à canção do cravo e a rosa, que, por sua vez, faz clara alusão a violência doméstica.

Se aprofundarmos o olhar sobre esse poema, a dualidade de vida e morte aqui exposto não precisa ser necessariamente o concreto, a morte efetivamente consumada, mas a morte simbólica provocada pela ferida, pelo despedaçamento emocional, como um "morrer" em vida.

Pouco adiante, Delalves retoma a crítica aos tempos modernos no poema "O Trágico de Os - o rio e o braço-morto", cuja primeira parte do poema expõe o narcisismo glorificado pela internet, "Efêmero, o tal Post sapiens / idolatra-se nulo; é face / quer status, não pensa, / língua emudecendo estrela. / Da tela aplaude o grito / e cala-se, logo inexiste".

Como um ciclo correndo para um fechamento, depois de retomar a crítica aos tempos modernos, Delalves resgata a paixão pela escrita em uma metáfora quase violenta entra a paixão da escrita e o prazer sexual, no contraste entre a dor e o orgasmo, o sofrimento e o êxtase.

Embora pequeno, Extemporâneo não é um livro simples. Tem um estilo e uma estética única, confesso que ficou, ao final da leitura, a curiosidade de saber quais são as influências de Delalves Costa. É sempre construtivo conhecer trabalhos que fogem da nossa zona de conforto, o trabalho do autor com certeza é um exemplo disso.
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Extemporâneo
Delalves Costa

Editora Coralina: Cachoeira do Sul, 2019
58 páginas
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Delalves Costa é um poeta gaúcho de Osório com 7 livros publicados e participação em diversas antologias e revistas literárias. É membro e sócio-fundador da Academia dos Escritores do Litoral Norte e atua como professor de português, literatura e texto técnico na rede estadual.

~Maya


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sexta-feira, 18 de outubro de 2019

Anti-minimalismo

Nada contra o clichê, o previsível, às vezes fazemos uma leitura de relaxamento querendo que nas próximas páginas esteja exatamente o que a gente espera que esteja. Bom, definitivamente não é o caso do livro "Lente de aumento para coisas grandes", de Sabrina Dalbelo.



Passamos a vida ouvindo que devemos dar valor às pequenas coisas, os pequenos gestos, os pequenos momentos, uma hipervalorização do minimalismo. Na contramão do microsentimentalismo, Sabrina inverte o óbvio e traz à tona o valor das grandes coisas. Das coisas gigantescas.

Justamente movida por essa ideia de que tudo o que é belo e sublime - e que deve ser valorizado - é pequeno que julguei que o livro de Sabrina seria uma sátira, talvez uma grande brincadeira com coisas materialmente grandes, até pelo título, afinal, quem precisa de lente de aumento para ver algo grande?

E então, durante a leitura, descobri que precisamos mesmo. Talvez até de um chacoalhão.

Sabrina não inventou a roda em seu livro. Nem transformou tudo em uma grande piada. Nem fez uma sátira com objetos grandes. Ela apenas subverteu a lógica do minimalismo. E fez muito mais sentido. A valorização das pequenas coisas virou a valorização das coisas grandes sob a ponta da caneta de Sabrina. A amizade não é algo pequeno, o amor não é algo pequeno, o nascer do sol não é algo pequeno. São grandes, são gigantes, e passam despercebidos, ou passam como as "pequenas coisas da vida", daí a ideia de lente de aumento.

Já que estamos falando de lente, o livro é dividido em quatro focos: a observação, o barulho, a descoberta e a identificação das coisas grandes.

Da valorização do pequeno, observamos os grandes que:
- o carinho cura
- a desigualdade fere
- o amor basta
- a saudade preenche
- o empoderamento completa
- o amor não é concreto
- o maior poder é o respeito
- falhar não é feio
- o corpo suporta uma vida bem vivida
- coisas boas acontecem quando nos permitimos
- velhice prefere o que é verdadeiro
- o que permanece das pessoas é o amor que existiu
- amizade é aquela que te guia
- existem coisas que não podem ser explicadas

Grande também é o lirismo que Sabrina emprega na sua observação; "não parece mas / há caridade / em doar saudade / a um coração vazio".

Também há crítica no seu trocadilho "ofensa / rima com crença / não por nada". O poema em questão se chama "rima pobre" e posso até concorda que o seja, mas nesses três pequenos versos há um significado gigante em um momento social tão crítico onde grupos religiosos ameaçam direitos civis de populações inteiras em um Estado que deveria ser laico.

Esse poema é um retrato simbólico bastante adequado para o livro como um todo - não o único, por óbvio - mas é um poema extremamente curto, três versos, poucas palavras e - nas palavras da própria autora - rima pobre - mas com um significado que transcende a página, a obra e essa resenha.

É o reflexo da antítese, do anti-minimalismo a que se propõe o livro, enxergar o grande a partir daquilo que se considera pequeno, e o livro tem grande êxito nessa missão, caprichando ainda mais nas negativas do poema "teoria da relatividade das coisas", que começa com "pouco amor não é falta de amor" e segue com uma série de exemplo de coisas que nem sempre são o que julgamos ser, como "aperto de mão forte não é cumprimento leal", "ter uma bíblia debaixo do braço não santifica ninguém", "cair não é para os cabelos" e termina com "não exclusivamente".

Relativiza o pequeno, relativiza o valor, relativiza as coisas.

E segue para o barulho das coisas, onde:
- o conto de fadas pode virar violência
- o sorriso ao indigente faz bem para os dois
- conexão olho no olho tem mais alcance que internet
- a vida é feita de mortes
- quem mais grita é quem tem menos a dizer
- falar difícil não significa ter conteúdo

Assim como a gente não percebe que o germinar de uma flor entre as pedras de uma calçada é um processo gigante de superação de uma semente e considera que apreciar a flor, já viva, é uma das pequenas coisas boas da vida, também não nos damos conta que, na vida miserável daqueles renegados pelo sistema, à margem da sociedade, um sorriso é muito mais do que um sorriso, é um sentimento de reinclusão.

Como dizer que esse sorriso é algo pequeno? Parece um gesto pequeno, contrair músculos do rosto para que os lábios fiquem arqueados. Simples, claro, mas para aquele que recebe o sorriso, esse gesto vai muito além, talvez seja até impossível de ser explicado. Precisamos dessa lente de aumento para que possamos enxergar o quão gigante é resgatar a dignidade de um ser humano com um sorriso.

Sabrina segue, denuncia, faz ela mesma o barulho. Diz ela "eu moro no subúrbio / da literatura" em denúncia a um elitismo que vem sendo combatido, mas que ainda se faz presente nos meios literários e afasta das livrarias e saraus as pessoas mais simples, quando sabemos que existe muita história e poesia às margens da dita elite intelectual. Por sinal, alguns dos maiores pesquisadores de literatura que conheço vieram de fora dessa tal elite. O mesmo posso dizer de tantos e tantas poetas que vêm ganhando cada vez mais espaço - e merecidíssimo espaço - pela qualidade de seu trabalho.

Sabrina também descobre as coisas grandes. Descobrimos juntas que
- enxergar é mais do que apenas ver
- tristeza afeta a visão
- um dia é um ciclo completo da vida
- simplicidade pode ser muita coisa
- ou tudo aquilo que é mais difícil definir, como
"o sapato sujo / conta sobre a estrada / não sobre os passos dados"

A gente se descobre nas coisas grandes, como a importância do partir, não apenas para encarar o desconhecido, mas para ter de onde voltar. Ou que o crescimento vai muito além das mudanças do corpo, mas da força imposta pela própria vida.

E quando chegamos na identificação das coisas grandes, Sabrina arrebata com uma apresentação direta de tudo aquilo que nem sempre prestamos atenção.
"- Quem é você? - perguntou ao abuso sexual.
- Sou um bloco de montar que não se encaixa nas outras peças. Não me importo, forço, nem que as quebre."

Há espaço para seriedade, há espaço para brincadeira:
"- Quem é você? - perguntou à rebeldia.
Ela saiu esbravejando, colocou uma placa de 'não perturbe' na porta e nunca respondeu."

"Lente de aumento para coisas grandes" me surpreendeu, não pela qualidade porque isso eu já esperava de Sabrina, mas pela quebra da expectativa sobre o tema. Fazer enxergar o gigantesco oculto no falso minimalismo. Jamais tinha parado para refletir sobre isso. A obra transcendeu à poesia nela impressa. É uma boa reflexão nesses tempos corridos onde temos que nos forçar a lembrar de admirar um pôr do sol vez ou outra para sobreviver ao caos. E o pôr do sol não é algo pequeno, nada pequeno.

Nada nesse livro é pequeno, nem o menor de seus versos.
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Lente de aumento para coisas grandes
Sabrina Dalbelo

Penalux: Guaratinguetá, 2018
113 páginas
Destaque para ilustrações de Eduardo Sussumo Smozono
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Sabrina Dalbelo é gaúcha, servidora do Ministério Público Federal e apaixonada por poesia, já tendo participado de antologias e publicado diversos de seus textos em páginas virtuais.

~Maya


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segunda-feira, 14 de outubro de 2019

Musicalidade concreta

Este blog, sempre tão movimentado, viveu seus dias de silêncio. Mas o motivo foi nobre: passei alguns dias sem acesso ao meu computador por causa da pilha de livros que se acumulou sobre minha escrivaninha enquanto meu tempo na Feira do Livro local me impedia de organizar a biblioteca. A coisa por aqui ainda não está 100%, mas o bastante para retomar nosso espaço literário.

Nesse período ausente, a leitura foi do livro "Um sol para cada montanha", uma coletânea poética de Andri Carvão, um querido amigo que conheci ainda ano passado e tive a honra de contar com sua presença no lançamento do meu último livro, em São Paulo. Na reportagem que fiz para este blog na ocasião de minha formatura em jornalismo, Andri, como um dos entrevistados entre os poetas com publicação independente, comentou que a escolha do modelo não foi bem uma escolha, mas uma falta de alternativa, já que não tinha conseguido uma editora para a publicação do seu primeiro livro.

Atualmente, Andri já está em processo de edição de outras obras com contratos assinados. Não conheço o conteúdo das obras em questão, mas depois da leitura de "Um sol para cada montanha", ficou claro pra mim o motivo das dificuldades de Andri em publicar essa obra específica: o movimento ao qual boa parte de seus poemas pertencem.



Andri, uma mistura de poeta com artista plástico, nos apresenta a mais pura poesia concreta. Uma poesia visual que mistura elementos diversos, formas, rimas e repetições de palavras, versos que, a um olhar rápido parecem idênticos mas não o são. 

A poesia concreta foi um movimento de vanguarda, com um caráter experimental, que colocou o universo literário de pernas pro ar com a quebra do poema lírico com o uso de uma linguagem visual. Seu grande marco no Brasil foi a partir da década de 1950, como herança dos modernistas, em especial do trabalho de Oswald de Andrade. Embora o movimento tenha deixado nomes de peso como herdeiros do estilo, não é uma poesia de fácil leitura ou fácil aceitação comercial, daí a dificuldade de publicação para um autor desconhecido.

A forma como Andri trabalhou seus versos na obra, e em especial na segunda parte que é integralmente de poesia visual é uma herança direta do legado da Semana de Arte Moderna de 1922, demonstrando que mesmo que o poeta tenha abandonado as artes visuais para abraçar a literatura, as artes visuais abraçaram sua literatura junto.

Me chamou a atenção, entretanto, o texto introdutório do livro, onde Andri conta um pouco de como surgiu a obra, deixando claro pra mim que o autor tem jeito pra uma prosa poética de qualidade. Relata uma adolescência problemática e o quanto esse livro é fruto justamente desse enfrentamento de uma realidade delicada. Talvez exatamente por isso alguns poemas tenham esses ares mais imaturos, talvez um tanto viscerais de quem está usando o papel e a caneta como arma de sobrevivência. A imaturidade aqui não é um demérito; nada que contribua com uma jornada comprometida com o crescimento é demérito.

Seus problemas trazidos à tona em versos começam a se tornar evidentes no poema "autorretrato com cara de paisagem", onde Andri demonstra claramente problemas de autoimagem, "O espelho é o oposto / do meu rosto". 

A partir do poema "duas quadras", percebi uma tendência que permaneceria durante toda a terceira parte do livro, composta de versos mais densos, poesias mais longas e, digamos, revoltas: existe uma musicalidade latente em seus poemas. Consigo imaginar facilmente uma banda de rock adaptando vários de seus poemas para os ritmos típicos dos anos 80 com refrões que grudam e rimas que repetimos 30 anos depois.

Além do aspecto concretista/visual e da musicalidade de seus poemas, também percebi que Andri conta histórias em alguns de seus poemas, que poderiam ser facilmente transformados em prosa. Como o texto introdutório demonstrou sua capacidade para a prosa, fico curiosa de ver como Andri adaptaria essas mesmas poesias em contos. Algo me diz que ficariam muito bons.

A partir daí tivemos características bastante pontuais no trabalho de Andri que merecem destaque. O poema "funerária & pintura" por exemplo compara de forma magistral grandes obras de pintura dos maiores nomes das artes de todos os tempos com poesia. Comparar não seria o termo ideal, mas perseguir, como Andri diz, em outras palavras. Todas as artes buscam a poesia, de uma forma ou de outra, formalmente ou não. Vejo sentido nisso.

Certamente esse poema poderia render uma discussão de horas com aqueles que acham que não gostam de poesia porque poesia é o gênero mais incompreendido das artes, o mais complexo de se julgar, o que mais depende de mil aspectos pessoais do leitor para conquista-lo. E apesar disso, o mais presente em todas as manifestações.

De forma pontual, meu poema favorito é disparado o poema "réquiem", o qual deixo a vocês na voz da poeta Mell Renault e produção de Carlos Figueiredo, da Cine Book:



Em termos gerais, a obra de Andri reflete com força a influência das artes visuais e concretas que ele traz de sua formação, trabalhando muito o jogo de palavras pela sua sonoridade ou forma, buscando um conjunto cuja harmonia nem sempre é o foco, como quando busca demonstrar sua revolta com problemas sociais através de poemas que incomodam, que causam desconforto em seus trocadilhos propositalmente trabalhados pra trazer mal-estar.

É uma obra de formação, de um poeta inconformado, de um artista que enxerga e transporta poesia para a forma, que transforma letra em desenho e desenho em palavra.
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Um sol para cada montanha
Andri Carvão

Chiado. São Paulo, 2018.
193 páginas
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Andri Carvão cursou Artes Plásticas na Escola de Arte Fego Camargo, em Taubaté, na Fundação das Artes de São Caetano do Sul e na EPA - Escola Panamericana de Arte (SP). Participou de diversas antologias, revistas e saraus literários e atualmente é graduando em Letras pela USP.

~Maya


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quarta-feira, 9 de outubro de 2019

Alucinógeno

Acompanhei com alegria o nascimento da editora Caos & Letras e o lançamento, mesmo à distância, do livro de contos "Estados Alucinatórios", de Eduardo Sabino. Já de imediato a capa inusitada me chamou a atenção. Com o livro na mão também observei a qualidade de todo o projeto gráfico, porque sim, isso conta. Quando se trata de uma editora tradicional, com história de mercado, um livro bem diagramado e bem impresso é o mínimo que se espera; de uma editora nova é quase um atestado de "ok, estamos prontos para publicar". É nitidamente o caso da Caos & Letras.


Embora o título e a capa já nos avisem que será um encontro com histórias com um pé no universo fantástico, nem se tivesse um texto introdutório explicando a proposta do livro chegaríamos nele realmente preparados para as surpresas que Eduardo nos preparou. Nem sempre uma narrativa contém algum significado escondido, uma metáfora, uma lição, uma mensagem edificante em suas entrelinhas, as vezes uma narrativa é apenas uma história a ser degustada, e não posso afirmar qual dos casos se enquadra nas histórias que Eduardo nos conta em Estados Alucinatórios, mas o fato é que encontrei muita coisa em histórias que misturam realismo e fantasia (ou absurdo) em narrativas incrivelmente bem desenvolvidas.

O livro começa já com uma história inusitada: Samuel é um jovem que conviveu quase a vida toda com um demônio no corpo. Longe de ser uma história de terror, é uma história com toques cômicos e repleta de metáforas. Achei simplista concluir que poderia se tratar de um amigo imaginário ou até mesmo reduzir a narrativa a uma mensagem sobre os "demônios interiores", embora isso se faça presente quando o demônio que habita Samuel influencia seu comportamento o suficiente para prejudicar alguns aspectos da sua vida.

Mas o demônio, de certa forma, também representa consciência, como uma companhia, a voz da razão e da perdição em um único ser acompanhando um garoto até então solitário. De tão solitário, o rapaz se torna amigo de seu demônio, provocando um desfecho tão hilário quanto triste, dependendo o ponto de vista.

Já de imediato, o primeiro conto me chamou a atenção exatamente pela já mencionada qualidade narrativa. Eduardo não se utiliza de recursos poéticos, que geralmente trazem elementos mais dramáticos e que, pessoalmente, me agradam muito, nem explora de forma escancarada o escracho, o cômico. É a ironia fina, de entrelinha, que conduz suas narrativas. E não somente do primeiro conto, mas praticamente do livro inteiro, fazendo com que as histórias trabalhem tanto o drama quanto o humor sem explorar recursos de forma forçada. É tudo muito natural.

Isso grita ainda mais ao olhos quando conhecemos o homem que adotou um crocodilo. Junior, o crocodilo, é, como qualquer outro crocodilo, um predador. Mas é um predador tal qual o homem, e, por isso, embora homem e crocodilo estejam distantes em formas físicas - o crocodilo vive em um aquário - se aproximam enquanto predadores. Mas não só isso, o narrador, "pai" de Junior, o ensina a falar e o presenteia com uma televisão, trazendo, em uma história que parece sem cabimento - um homem tratando como filho um crocodilo que fala, um debate atual: manipulação midiática.

Dias e dias exposto à influência da mídia, da televisão ligada o dia todo como sua única diversão fazem com que Junior, o "filho", deseje "caçar" um comunista. E aí o narrador se vale de todo tipo de estereótipo para atender os desejos do "filho" - ironizando a ideia de um "pai de pet", afinal, nesse caso, ele efetivamente educa, cria e alimenta o animal. O fato de o pai planejar a caçada para atender ao desejo selvagem do crocodilo de devorar um comunista devido ao ódio do animal criado pela influência da mídia mostram o quanto a selvageria de ambos não está muito distante.

De todo o livro, entretanto, meu conto favorito é "Blattaria". A verdade é que gostei do livro todo, teve um ou dois contos que não me impressionaram tanto quanto os outros embora não tenha deixado de gostar por isso, mas "Blattaria" me arrebatou. Além da narrativa fascinante que prende a atenção do início ao fim, de uma história extremamente bem contada, o final do conto não apenas me levou aos prantos como me obrigou a largar o livro por alguns minutos e ficar olhando pras paredes até assimilar o que tinha acabado de ler.

Por óbvio não vou contar o final do conto, mas a história relata a rotina insana de uma família de quatro pessoas, sendo pai, mãe e duas crianças - a mais velha é a narradora - residindo em uma casa muito antiga que sofre com a infestação de baratas. A narradora estuda as baratas, descobre as espécies e ela, o irmão pequeno e a mãe, entram em uma guerra com os insetos que é interrompida pelo pai, que inicia uma estranha relação de afeição pelos bichos.

Inusitado, sem dúvida. Muito bem escrito, como os demais. Justamente por se tratar de um livro de mexe com o fantástico, que traz o improvável para a realidade palpável, li o conto tentando adivinhar o que poderia acontecer com essa família. Se tornaria o pai um rei das baratas? Seria "Blattaria" uma releitura contemporânea de "A Metamorfose", de Kafka? Tudo era possível, e nada me preparou para o verdadeiro desfecho. Aplausos a Eduardo, que certamente previu que o leitor esperaria um final apoteótico e nos estapeou as fuças de forma extremamente competente. "Blatteria" entra para minha lista de contos favoritos, não do livro, da vida.

Mas claro que não para por aí, estamos só na página 73 de um livro de 200 páginas. O conto seguinte, "Um sonho chinês", não ficou pra trás no quesito qualidade narrativa. O grande destaque nesse conto - e que merece menção honrosa no meu ranking de melhores contos - é a criatividade do autor. Na história, o narrador sofre com algum distúrbio que o impede de se manter acordado muito tempo. Enquanto dorme, ele passa a viver a vida de outra pessoa, um rapaz chinês. A coisa é tão doida, tão inesperada, que eu fiquei mais tempo imaginando o que se passou na cabeça do autor enquanto escrevia esse conto do que efetivamente navegando por ele.

Já em "Pessoa Física", retomamos as metáforas explorando o mundo consumista onde literalmente as marcas fazem a festa enquanto o homem vive de pagar as contas. O que mais fascina nesse conto é a literalidade da metáfora, acho que nunca tinha visto uma metáfora ser usada de forma tão literal - capacidade de exploração do universo fantástico definitivamente é um mérito incontestável de Eduardo.

O mesmo acontece em "Ofertório". A narração aplicada nesse conto é uma ferramenta poderosa no efeito que ele causa no leitor, já que o narrador responde a terceiros mas não temos as vozes desses terceiros. Os motivos também fazem parte do próprio tema do conto: os terceiros são os pecadores que serão sacrificados em purificação de seus pecados através da encenação de famosas passagens bíblicas. Como pecadores, embora o narrador interaja com eles, eles não têm voz. O "não ter voz" não é literal dentro do conto, já que o narrador os escuta, mas o autor priva o leitor de escuta-los, garantindo que sua voz não seja ouvida e essa ideia da ausência de seus direitos por serem "inimigos" do poder vigente fique evidente. Estratégia brilhante. E claro, conto chocante, explorando a hipocrisia de um fanatismo altamente letal.

O último conto que vou tecer comentários aqui, até para que vocês também possam descobrir os demais por conta própria é o único que foge 100% da realidade, já que narra a história de uma família de porcos. Da realidade palpável, mas não metafórica, já que os porcos, no conto, tomaram o lugar dos homens, considerados uma raça inferior e extinta. De imediato me remeteu à Revolução dos Bichos, de George Orwell, embora não tenha muita relação direta uma história com a outra. Entretanto, o simbolismo que se usa do animal porco me faz crer que a escolha deste para a família do conto de Eduardo não tenha sido em vão (e triste, porque porcos mesmo são animais dóceis).

Já nas primeiras linhas do conto, ficou claro que o conto, onde um dos leitões começa a demonstrar trejeitos humanos, o que é visto como uma aberração pela sociedade porca, é na verdade uma metáfora com a homossexualidade. Até mesmo a forma depreciativa com que o pai porco descreve a sensibilidade de seu filho é semelhante ao que vemos homofóbicos falando de homossexuais. O autor ainda escolhe o termo "homossapientes" para descrever os porcos humanizados. Ok, sabemos que o termo se refere à espécie humana, homo sapiens, mas a escolha foi providencial para uma associação mais direta.

As grandes marcas de Estados Alucinatórios são, sem dúvida, a capacidade narrativa e a criatividade do autor. Começamos cada conto sem fazer ideia de pra onde ele vai nos conduzir, ou de onde ele tirou uma ideia dessas, e somos levados por toda a história de forma suave, quase sem perceber. Apelidei esse tipo de narrativa de "leitura escorregadia"; não há pedras no caminho, a leitura flui e, quando você menos espera, chega ao desfecho. Um livro fascinante tanto por histórias divertidas quanto por metáforas muito bem construídas, narradores fortes, situações inusitadas e reflexões. E alucinações, porque essa também é a ideia.
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Estados Alucinatórios
Eduardo Sabino

Caos & Letras: Nova Lima, 2019
200 páginas
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Eduardo Sabino nasceu em Nova Lima, Minas Gerais, em 1986. É autor dos livros de contos Naufrágio entre Amigos (Patuá, 2016) e Ideias Noturnas sobre a Grandeza dos Dias (Novo Século, 2009) e recebeu o prêmio Brasil em Prosa 2015 pelo conto "Sombras".

~Maya


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quarta-feira, 2 de outubro de 2019

A cor dessa cidade

Vivo em uma bolha onde cada vez mais poetas tiram seu trabalho da gaveta e jogam ao mundo. Vejo diariamente livros de poesia sendo publicados em pequenas e corajosas editoras, algumas sobrevivendo de atividades paralelas, outras da verba do próprio autor, que cobre os custos da publicação de seu livro. Dentro dessa bolha onde eu vivo, o consumo da poesia vem aumentando e enchendo os poetas de esperança, mas sabemos que do lado de fora a coisa é um pouco menos conto de fadas.

Tudo se resume a uma frase que ouvi de uma editora ao tentar publicar meu primeiro livro de poesias, aos 14 anos: "poesia não vende". Não parei de escrever poemas e hoje tenho dois livros do gênero publicados, mas me chamou a atenção para uma coisa: poesia até vende, mas muitas vezes o que vende na livraria é o autor com nome famoso, que a pessoa compra pra fazer bonito e não necessariamente vai ler. Na reportagem que fiz sobre esse panorama da poesia brasileira contemporânea, em que entrevistei alguns dos editores que mais investem em poesia, a informação que surgiu é que fora do grande circuito comercial, das redes de livrarias e afins, o que vende é poesia de gente que construiu um bom público por meio de participação de eventos, premiações, saraus e afins.

Qualquer das alternativas exclui poetas fora do eixo central do país - onde a maioria dos eventos acontece - e que não possuem condições financeiras para se fazer presente. A soma dos dois fatores - nomes consagrados e gente que consegue se fazer presente pra ser visto - faz com que um número gigantesco de ótimos poetas amarguem uma vida artística de invisibilidade.

Na contramão de todo esse pessimismo, um jovem poeta, que atua como dentista para sobreviver, provindo do sertão nordestino, filho de uma cidade com 17 mil habitantes e que produziu um livro em homenagem à sua cidade de forma totalmente independente foi à São Paulo, em 2018, entrar pra história. Maílson Furtado foi o primeiro autor independente da história a ganhar o Jabuti de Livro do Ano. Não só nisso fez história, mas também não é nada comum que um poeta leve esse prêmio para casa.



Do interior do Nordeste, diretamente do sertão, para o mundo. Maílson, independente de qualquer análise (que vai acontecer abaixo) já se tornou um nome a ser lembrado, pela independência de sua produção, pelo gênero literário e, principalmente, por estar fora dos dois circuitos que mais garantem vendas e premiações.

Quanto ao livro em si, porque isso era pra ser uma resenha e não uma reportagem (se fosse uma reportagem, eu estaria com um timing de quase um ano de atraso), a primeira coisa que me chamou a atenção foi a cor.

Nunca estive no sertão nordestino. Aliás, nunca estive no Nordeste, mas fora a imagem turística das belas praias e todo o estereótipo tanto negativo quanto positivo que chega aqui no sul, sempre que penso em uma cor para o interior da região, é justamente o marrom terra. O livro de Maílson e todo dessa cor, das ilustrações às palavras. É como ter, de algum jeito, um pouco do sertão nas mãos. E não deixa de ser, já que a poesia longa apresentava no livro tem exatamente esse objetivo.

Ler a terra do sertão. Temos em mãos um livro recheado de metáforas, jogos de palavras, brincadeiras fonéticas gramaticais. Uma terra composta de figuras de linguagem. E de estreia, o começo do livro se abre em musicalidade.

Não há regras na poética de Maílson. Cada pedaço de sua poesia é como manda sua vontade, sua imaginação e a terra de Varjota, a cidade homenageada por Maílson que, ironicamente, nem livraria tem. Logo em seguida, como um organismo vivo feito de pedras e terras, as ruas da cidade são convertidas em veias por onde o fluxo da vida humana passa.

Na página 10, o poeta mistura o vivo e o não-vivo como uma coisa só. Tudo o que é vivo passa, em uma tarde da rotina comum da cidade. Menos as casas. As casas permanecem paradas mesmo que o poeta as dê vida enquanto cochilam, despertam ou dormem. E dormem em pedaços, onde as luzes se apagam, a casa adormece. Maílson humaniza a casa, como se o apagar do poste, na chegada do amanhecer, fosse seu despertador, o sinal que a casa recebe da cidade para acordar.

As ruas se tornam um elemento tão importantes na poética de "À cidade" que nos damos conta que as casas - organismos não-vivos - não pertencem aos seus moradores, mas às ruas. Os moradores se deslocam, saem, voltam, mudam de endereço, enquanto as casas permanecem no mesmo lugares, imóveis, onde devem estar. Se demolidas para saírem da rua, deixam de ser casas. A casa pertence à rua, que pertence à cidade, onde o homem, esse sim organismo vivo, habita.

Nessa mesma linha temática explorada no livro, de forma metafórica, o autor também humaniza objetos que integram a rotina dos moradores da cidade. A enxada trabalha, a casa adormece, o homem tem raízes. Uma salada de frutas de figuras de linguagem que tornam todos semelhantes entre si, mesmo que o homem tenha as veias, a cidade as ruas, que funcionam exatamente da mesma maneira - bombeando vida, mantendo o corpo - e a cidade - em movimento. Como o homem que riu, o rio que respinga.

Na descrição da rotina da cidade, Maílson traz toques de homenagem à tradição oral, responsável pelas lendas que norteiam produções literárias até os dias de hoje e que, certamente, tiveram importante papel na sua construção cultural como leitor e como poeta. E como tudo é vivo na poética do autor, reclama ele que o clima desrespeita os intervalos que a cidade e os homens fazem, trazendo um retrato poético do interior.

Nos dias que seguem, o sol é sempre o mesmo a garantir a rotina. É sempre o mesmo mesmo que não pareça estar lá. E chegamos no domingo, onde tudo o que é vivo também é folga, é namoro na praça, é o rio dele rindo com seu avô enquanto o rio da cidade goteja, sempre vivo. Domingo é dia de feira também, metaforizando que de segunda à sexta também há feira, mas não a mesma feira do domingo.

O rio da cidade é da mesma água que deságua no mar, que percorre oceano, que encosta nos países de outro continente, como se sua pequena cidade sertaneja estivesse naturalmente conectada com o mundo.

Mais tarde, em sua narrativa composta de figuras de linguagem, Maílson mistura a origem do rio com sua própria genealogia. Tudo está conectado. Como o trem no trilho, que, na obra, também ganha vida, e uma vida pulsante de quem carrega homem e progresso. Já as pontes, Maílson as chama de suturas, como os pontos que unem a pele rasgada, as pontes unem o rasgo da terra.

Enquanto segue sua descrição da cidade viva, o poeta homenageia os famosos pontos de referência, que, mesmo em cidades um tanto maiores do que a sua, por vezes se tornam mais importantes aos que transitam pela cidade do que o próprio nome da rua. Quem jamais ouviu "fica na rua do mercadinho" ou "segue pela rua da farmácia"?

Já se encaminhando para o encerramento da obra, Maílson lembra de tantos que saem de suas pequenas cidades do sertão para tentar a vida nas cidades grandes, mudanças extremas que levam esses organismos vivos para longe da cidade, mas a cidade e sua vida pulsante não abandona por completo esses organismos vivos que partiram, tal qual o rio, que se desloca mas é sempre da cidade, tal qual o trem que se desloca mas sempre volta.

O poeta finaliza sua ode ao sertão e à cidade de onde veio em especial colocando-se como parte dela, como um órgão no corpo cidade, como um glóbulo que passa carregando vida pelas suas veias-ruas.

Poesia é um gênero complexo, muito mais dependente do gosto pessoal do que a prosa, muito mais fácil de ser julgada por sua qualidade ou falta de. O que me encanta, na obra, é a verdade que o trabalho de Maílson carrega. Ele não homenageia a cidade em vão, ele homenageia um amor verdadeiro, como uma poesia à sua amada, como os tradicionais poemas de amor que tanto sucesso fazem.

Maílson não nos transporta à Varjota pela descrição. Termino o livro sem fazer ideia de como é a cidade, de forma imagética, mas nos transporta via metáfora. Sei que tem vida de interior em Varjota, sei que no domingo tem feira e os jovens namoram na praça, sei que que a sesta é respeitada, que as ruas são pulsantes, que o rio deságua, que o trem passa, sei que pessoas saem de lá mas suas raízes ficam. Sei que, de forma metafórica, folheei a terra do sertão nordestino enquanto conhecia a cidade. Não necessariamente a cidade onde nasceu Maílson, mas a cidade onde as tradições são preservadas e as casas amanhecem todos os dias.
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À cidade
Maílson FurtadoViana

Produção independente. Fortaleza, 2017
60 páginas
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Maílson Furtado Viana é autor das obras Sortimentos (2012), Conto a Conto (2013) e Versos Pingados (2014). Membro-fundador da Cia Teatral Criando Arte e membro-fundador do Grupo Literário Pescaria. O livro "À Cidade" venceu o Prêmio Jabuti como Livro do Ano em 2018.

~Maya

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sábado, 28 de setembro de 2019

Pelos cantos mais estranhos do mundo

Quando eu era mais ou menos uma pré-adolescente, comprei um exemplar de Romeu & Julieta, de Shakespeare, não por interesse na história porque todo mundo conhece a história, mas para levar para a escola e mostrar pra todo mundo que eu lia Shakespeare. O que eu não vi na hora da compra é que o livro veio em formato de roteiro de teatro. Acima de tudo, Shakespeare era dramaturgo, e na época eu sequer sabia que essa palavra existia. Não consegui ler o livro.

Passados uns 25 anos de minha pequena "tragédia" particular, chegou em minhas mãos a obra "Nos países de nomes impronunciáveis", de Paula Autran. Para além de um nome instigante e uma capa espetacular, me deu arrepios ver, logo acima do nome do livro, os dizeres "Coleção Palavras para Teatro". Socorro. Paula Autran é dramaturga, já anunciei o livro dela para resenha no Bibliofilia, e agora?

Bom, entendo vários nadas de dramaturgia, então sou absolutamente incapaz de dizer se o texto que o livro contém é o mesmo trabalhado sobre os palcos ou se foi adaptado para a publicação, só sei que, ao contrário do meu exemplar há décadas doado de Romeu & Julieta, "Nos países de nomes impronunciáveis" não é apenas fácil de ler: é uma delícia. É importante frisar que, para a análise completa da obra e seus personagens, algumas das diversas revira-voltas serão reveladas. Portanto, contém spoiler.


O resumo da ópera (ou da peça, no caso) é que temos três mulheres que arrumam as malas e saem de casa, deixando para trás somente uma carta aos que ficaram. A primeira é Kátia, uma jovem que passou a vida trancada em uma casa cheia de cadeados porque a mãe temia que a propriedade fosse invadida por bandidos. A segunda é Ocridalina, uma jovem que sente que precisa viver a liberdade antes de assumir um compromisso concreto com o namorado Henrique, mas principalmente, precisa descobrir a origem de seu nome peculiar. A terceira é Joana, uma mãe que sente que se perdeu de si mesma depois da maternidade embora esteja claro o amor que sente pelo filho.

Cada uma dessas três mulheres, distintas entre si e fugindo de relacionamentos de naturezas tão diferentes, tem motivos fortes para a necessidade que as impele à fuga. Todas as cartas, as primeiras, assumem um tom de desabafo com grande profundidade, como se a autora assumisse integralmente os sentimentos de cada uma delas ao escrever as cartas - e é o que se espera de um bom escritor.

Kátia, ao se despedir da mãe e de sua paranoia, o faz dizendo "eu sou o ladrão que, ao invés de entrar, sai. Assim não te tiro nada, mas te trago, pela ausência". Kátia sentia uma solidão profunda isolada em uma casa transformada em fortaleza, "era eu que ia lá e areava todos aqueles cadeados e tirava o pó das chaves todas". Para além disso, não apena o isolamento causado pela fortaleza, mas também pela ausência da mãe. Relembra Kátia que suas melhores lembranças de infância viveu ao lado da empregada, Maria José, e seus livros de bancas de revistas e novelas mexicanas.

Mais tarde, quando temos um adendo das três cartas, ainda descobrimos que a mãe de Kátia nem sempre se lembrava de pagar o salário da empregada. Kátia se sente dolorida, abandonada como toda criança negligenciada, mas com um agravante: ela sente, pelo foco constante da mãe na manutenção da casa sempre fortemente vedada, que, para a mãe, o bandido imaginário era mais importante do que ela, ou pelo menos era a ele destinada muito mais atenção do que a ela.

Seguimos para a carta desabafo de Ocridalina, "entenda o que as palavras não podem dizer", relata ela ao se revelar oprimida por uma relação que parece estar ficando séria demais para seus desejos de liberdade, em especial sobre um anel que representou um amor desses avassaladores; o anel que pertenceu à mãe de Henrique e seu casamento com o pai do rapaz. "Eu quero entender a coragem que sinto em mim, e que às vezes percebo que te assusta", diz ela, declarando em seguida que se assusta também, mas que precisa, como Cabral, se lançar aos mares. Aqui a referência é justamente sobre sua sabida origem portuguesa.

Ao fim da carta, Ocridalina não deixa dúvidas de que não importa o tamanho do amor, o que ela sente por Henrique não cabe nos limites dos sonhos matrimoniais do rapaz. O que impressiona nessa carta é que, ao ler, a sensação que se tem é que já se tratava de um amor esvaziado, que a fuga de Ocridalina foi, na verdade, uma tentativa de encerrar a relação. Depois da tristeza de Kátia por uma infância de clausura e de negligência da mãe, o sentimento de dor não se repete, o que se percebe aqui é quase uma desculpa para fugir da relação. A diferença entre as narradoras é gritante, são vozes destoantes cujas personalidades são expostas por alguém que tem o domínio na criação de personagens.

A terceira carta, por sua vez, é a que trouxe a maior carga dramática. Joana é mãe, sente-se envergonhada em escrever uma carta de despedida ao filho, como se confessasse um crime. Joana descreve sua despedida como uma "descarta", uma "não-carta". Em dado momento, Joana desabafa: "Você nasceu grande e eu me fiz cada vez menor do teu lado. Você aprendendo a falar e engolindo as minhas palavras".

A carta de Joana carrega em si a maior carga dramática e traz à tona um dos assuntos mais cheios de tabu que a maternidade carrega: a anulação completa de um ser humano ao tornar-se mãe. Joana ama o filho. A dor de partir e deixa-lo para trás é evidente em cada linha e quase nos estapeia as fuças. Eu, que não vivo a experiência da maternidade, pude sentir profundamente a culpa que Joana carrega pela decisão de partir.

Eis que se desdobra um debate importante - e que faz dessa carta um material riquíssimo para análises mais profundas e técnicas para quem estuda e trabalha com os desafios e imposições sociais da maternidade: Paula aqui não mede palavras, nem sobre a anulação de Joana ao se tornar mãe e deixar de ser Joana, nem sobre o quanto essa mulher anulada nutre um amor concreto e inquestionável pelo filho. Cabe múltiplas interpretações, se colocada a carta no nosso contexto social onde a mãe é uma figura de quase sacralidade (ao mesmo tempo que sofre isolamento com a proibição de crianças em vários ambientes e a polêmica sobre amamentação pública, que faz com que muitas mães sejam empurradas para fora do convívio social) e uma mulher é um ser de menor valor diante de seu papel maternal.

Joana, que descobrimos depois ser poliglota e com notável conhecimento em línguas, se sente absolutamente silenciada. "eu aprendi que o silêncio é só a outra face da mesma moeda da fala". O relato de Joana, além de todas as questões sobre maternidade que renderiam uma tese inteira, ainda tem um importante tratado sobre o silêncio. Para ela, buscar o silêncio onde ele é exigido já não lhe basta porque, poliglota, entende que o silêncio dela e de alguém que fala em inglês é idêntico.

O que ela precisa é da incapacidade de se comunicar, um silêncio de incompreensão, para resgatar a si mesma, e, por isso, decide partir para algum país cuja língua lhe seja um completo mistério. Ainda assim, no adendo de sua carta, Joana deixa ao filho, Caio, receita de lasanha de legumes para aproveitar os legumes que estão na geladeira, em uma tentativa de dar ao filho algum tipo de autonomia e a si mesma um pouco de paz.

Findadas as cartas, descobertas nossas viajantes para países de nomes impronunciáveis, vamos recebendo notícias de que fronteiras estão sendo fechadas por motivos diferentes.

Como não há uma narrativa linear por parte de Paula, em uma leitura desatenta é provável que passe despercebido esse detalhe, mas a cada notícia de fechamento de fronteira, temos a carta resposta a cada uma delas, presas em embaixadas de países com nomes impronunciáveis.

Clarice, mãe de Kátia, adquire quase um tom debochado, como se encarasse a atitude da filha como um ato de rebeldia juvenil. Ao contrário da carta de Joana - outra mãe - Clarice zomba, justifica que os cadeados eram mesmo contra ladrões e, como se diz popularmente, "faz pouco caso" do desabafo da filha, que não escondeu seu sofrimento na primeira carta.

Não há como se ter empatia por Clarice. Não há por ela o amor materno que há de Joana por Caio. Por mais que a própria sociedade no leve a entrar na pele de Kátia e sentir com ela o sofrimento do abandono (mesmo que não concreto) que a levou a sair de casa, fica ainda a sugestão de reflexão sobre a anulação completa da mulher que se torna mãe. Clarice é dona de si. O que a torna aqui alvo de crítica - e essa sim, válida - é que Clarice é uma dona de si com ar de arrogância que tentou, inclusive, tirar da filha sua única lembrança boa da infância, e que esquece de pagar o salário da empregada como se a única coisa que realmente importasse, além de si mesma, fosse defender sua propriedade. Mesmo que alegue tentativa de proteger a filha, ali o que vale ainda é a ideia de propriedade.

Depois da próxima notícia que nos situa na prisão de Ocridalina em uma embaixada, a resposta de Henrique muda toda a imagem criada pela carta dela sobre a relação dos dois. Não se trata de uma moça indisposta a se manter na relação dos sonhos do namorado, tradicional, com o anel símbolo do amor eterno e verdadeiro. Henrique tampouco está interessado em uma relação dessa natureza. Inclusive está furioso que Ocridalina deixou a chave com o porteiro.

Nessa segunda carta resposta, nos deparamos com uma história que completa o quadro de uma forma basicamente oposta à esperada pela carta deixada pela moça. Foi um choque me deparar com uma carta seca, com um tom raivoso, e não um namorado choroso implorando pelo retorno da namorada. Uma grata surpresa, aliás, uma quebra completa de expetativa. 

Já caio, filho de Joana, se revela um rapaz que, mesmo adulto, se viu completamente perdido com a ausência da mãe, e nos revela surpreso ao ver uma filóloga, "tradutora das Mil e Uma Noites, uma mulher reconhecida e premiada pela potência de sua fala em quase uma dezena de línguas ter sido presa pelo que eles chamaram de: 'falta de comunicação'". As informações reveladas por Caio em sua carta dão uma dimensão ainda maior do drama relatado por Joana em sua despedida. Uma mulher que trabalha, vive e é reconhecida por sua fala sente que perdeu a voz.

Antes de um desfecho - e aqui encerram-se os spoilers - o resto recomendo a leitura do livro porque novas surpresas virão - ainda temos a notícia da abertura das fronteiras com a possibilidade de volta para a casa das três mulheres e os depoimentos de Maria José - empregada de Clarice - Jaílson, o porteiro no prédio de Henrique, e Marcinha, namorada de Caio. A partir daí as cartas são substituídas por bilhetes

A abertura das fronteiras poderia representar, de forma simbólica, um retorno ao ponto de origem sem uma solução concreta dos fatos que levaram as três mulheres a terminar em países de nomes impronunciáveis. Como prometido, encerrados os spoilers, não posso seguir adiante relatando os fatos do livro, então me atenho a uma última análise de tudo o que nos é apresentado nesse pequeno livro.

Temos três mulheres que vivem três tipos de relações arruinadas: a mulher negligenciada pela mãe, a mulher que vive uma relação fracassada com o namorado e a mulher que se percebe completamente anulada em sua relação com o filho. O desfecho da obra, tanto os bilhetes de um lado quanto de outro deixam a falência dessas relações ainda mais nítidas e dramáticas, embora em momento algum a obra apresente um tom lamuriento ou piegas.

Paula Autran nos apresenta um livro que, mesmo com temas tão sérios, é uma leitura leve e cativante, além de escancarar sua imensa habilidade na construção de personalidade dos personagens, já que temos Kátia, Clarice, Ocriadlina, Henrique, Joana, Caio, Maria José, Jaílson e Marcinha não apenas como personagens da trama, mas como narradores, os 6 primeiros de forma mais contundentes e os últimos três de forma mais rápida, nos depoimentos. 6 narradores principais com uma personalidade bem definida não é uma tarefa fácil, exige treino, experiência e trabalho.

Como disse no começo do texto, não sei se o livro está no formato de dramaturgia, mas, mesmo identificado como texto de teatro e mesmo sendo sua autora uma dramaturga, trata-se de uma peça de ficção de indiscutível qualidade. É um livro em formato de bolso, de 87 páginas, inteiro no formato de cartas, bilhetes, depoimentos e pequenas notícias, mas que construiu com maestria três tipos de relações falidas, abrangendo um enorme campo simbólico sobre cada personagem e sua personalidade. É um feito louvável, em especial se fizermos um paralelo entre as duas mães e suas visões sobre a maternidade. Renderia um excelente debate.
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Nos países de nomes impronunciáveis
Paula Autran

Patuá: São Paulo, 2014
87 páginas
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Paula Autran é mestre (e doutoranda) em artes cênicas pela ECA/USP. É formada em história (USP) e jornalismo (PUC). Tem seis livros publicados, entre eles o livro de poemas Manifesto de mim mesma (editora Patuá). Teve sete peças encenadas. Integrou o Núcleo de Dramaturgia do CPT, de Antunes Filho, e o workshop do Royal Court Theatre. Também ministra aulas de dramaturgia.


~Maya


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domingo, 22 de setembro de 2019

Sobre ossos

A leitura da poesia é um processo extremamente individual, cada um a sente à sua maneira conforme suas vivências e sua percepção da realidade. Não gosto de discutir técnicas porque o fazer artístico transcende técnicas, regras e manuais pré-estabelecidos. Fôssemos considerar somente a técnica, perderíamos toda a poesia de rua, os slams, as expressões poéticas de periferia que pipocam por aí e dão um brilho todo especial ao que conhecemos por poesia.

A quebra de qualquer noção de "regra" (e uso aspas porque imposição de regra na arte é quase uma ofensa ao que torna a arte bela ou revolucionária) foi a primeira coisa que me chamou a atenção no livro "Casa dos ossos", de Prisca Agustoni. O livro, editado em 2017 pela Edições Macondo, é para ser lido em um só fôlego. Não apenas por ser um livro curto, mas por suas interligações que unem três partes em um conjunto harmônico.



Na primeira parte, chamada de "Além da Soleira", Prisca explora a fonética das palavras, o seu som, a combinação de sons que tornam seus poemas especiais para uma leitura em voz alta, uma declamação. Prisca não usa pontuação, deixando o leitor escolher onde fazer seus intervalos. É aí que entra a magia da declamação: em uma leitura silenciosa, os poemas podem ser vistos como um bloco único, uniforme. É na necessidade de pausas para renovação do oxigênio que o poema se redesenha ao gosto do leitor.

Esse recurso, tanto da fonética para embelezar a leitura, quanto da ausência da pontuação, faz com que o poema ganhe significados distintos para cada leitor e cada leitura. Inclusive eu mesma testei a leitura de alguns com mudança de espaço de intervalo, e foi uma experiência bem interessante.

O recursos fonéticos ficam claros no poema da página 13, com a semelhança sonora de palavras usadas em vários versos, como "descalça, "cetro", "senda", ou a rima criada do meio do verso ao final do outro: "eu paro perdida abro os olhos / no meio do caminho da vida". Percebe-se que a rima só funciona se a pausa isolar o "perdida" no verso, e o uso da pausa depende exclusivamente da vontade do leitor.

Além de uma construção livre e fascinante dos versos, Prisca, na primeira parte de seu livro, proporciona ao leitor recursos para interagir com os poemas, permitindo que cada peça seja totalmente mutável, adquira significados próprios e novos a cada leitura.

A segunda parte, "Casa dos Ossos", empresta aos versos alguns exemplos de pontuação, mas se difere da primeira parte na exploração de metáforas, inserindo a língua e o corpo em comparações fascinantes do corpo como instrumento da língua. Por língua, vale frisar, me refiro ao português mesmo, e não à língua como parte de nossa anatomia.

Um exemplo muito forte disso está no poema da página 19, onde Prisca, em dado momento do poema, nos diz:
dedos e unhas
na ponta de cada sílaba
são facas sutis que adentram
          a língua
para expelir
os unguentos oleosos
do texto

Elementos corporais misturados anatomicamente com elementos textuais, como um organismo vivo que é tanto o corpo em funcionamento quanto o texto em sua construção e em sua vida útil. Como se o texto ignorado, abandonado, pudesse ser comparado ao corpo morto, inanimado.

À página 22, Prisca escreve, em certa parte de seu poema:
Pouco além da porta
rastejam os verbos
entre a língua e o hímen

As metáforas construídas por Prisca conferem vida pulsante ao texto e seus elementos, mas não se restringem a eles. Como na página 28, em que escreve:
tua presença
reduz o cômodo 
a um aquário:

quero ar
quero ar

longe de lábios parasitas

Nesse trecho do poema vemos a força claustrofóbica de uma relação abusiva, sufocante, trazendo a relação do diminuto espaço do aquário e a dificuldade de respirar, a sensação de afogamento, que uma prisão psicológica pode causar. Nada ali é literal, não se trata de um pessoa efetivamente presa em um aquário ou vivendo uma situação concreta de afogamento, mas de uma pessoa sufocada por uma realidade opressiva.

Destaco ainda, nessa segunda parte do livro, os versos antes que teu rosto / mergulhe na memória pela simples beleza dessa construção, embora fosse possível tirar daí uma análise mais profunda da metáfora utilizada para a distância, separação ou mesmo tentativa de esquecimento da pessoa a qual o poema se refere.

A terceira parte do livro, "Rubras Veias", embora ainda trabalhe com metáforas como a segunda e com fonética como a primeira, traz um trabalho mais imagético e repleto de simbolismos.

Quando, à página 49, Prisca se compara a um ícone exposto e se vê murchada pelos olhares da multidão representada por uma única pessoa, também contrapõe o símbolo ao dizer que suas palavras murchadas são igualmente duras como os ossos, trabalhando uma contradição simbólica entre o esvaziamento e a rigidez, ambas sinal de um certo grau de sofrimento do emissor.

Entretanto, o simbolismo que mais me atrai e que fecha o livro com chave de ouro faz justamente um trocadilho com o dito popular aqui citado, talvez até de forma proposital (somente a autora poderia confirmar isso), quando encerra seu último poema com tantas e tantas portas / e nenhuma chave.

Eis a discordância do leitor: muitas e muitas chaves são entregues ao leitor ao longo de uma obra que, embora dividida em três partes, se mantém coesa.

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Casa dos ossos
Prisca Agustoni

Juiz de Fora: Macondo Edições, 2017
53 páginas
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Prisca Agustoni é poeta, tradutora, ficcionista e autora de literatura infantojuvenil. Vive entre a Suíça e o Brasil onde trabalha como professora de literatura comparada. Seu trabalho literário se desenvolve em português, francês e italiano. 

~Maya

quarta-feira, 18 de setembro de 2019

Fora de ordem

Vai parecer estranho, mas esse parágrafo não é o começo da resenha. Planejei cuidadosamente como seria o começo da resenha, e não, não era assim, mas achei pertinente começar com uma observação engraçada sobre um comportamento comum que também foi o meu: "livros grossos assustam, eu prefiro os finos". Ao contrário do que você vai pensar, livros grossos não me assustam (inclusive minha biblioteca tem muito mais grossos do que finos e o parágrafo está desandando), a questão é que, depois de duas leituras rápidas de livros de poesia, decidi que a próxima resenha seria de um romance, para variar. Valorizando não só autores que me disponibilizam suas obras, mas editoras também, decidi que o romance seria um dos três livros gentilmente cedidos pela Caiaponte Edições.

Ok, ok, erro de cálculo, esse parágrafo também não é o começo da resenha. Na hora de escolher o livro, sabendo que tinha uns projetos pessoais pra tocar, usei como critério o tamanho. Sim, escolhi o livro mais fino entre os enviados pela editora para fazer minha leitura minuciosa em um tempo mais curto para manter o blog alimentado enquanto tocava outros projetos. Pensa numa pessoa que aprendeu na marra que livro menor não significa leitura mais curta. E agora sim, vou começar a resenha.

Lembro da primeira vez que assisti "Amnésia", filme do ano 2000 dirigido por Cristopher Nolan, ou de praticamente todas as vezes que assisti qualquer coisa dirigida por David Lynch incluindo a série Twin Peaks (uma de minhas favoritas, por sinal). Deste último, tirando o belíssimo Homem Elefante, não teve um único filme que não tenha me causado o efeito de vertigem.

Qualquer dessas obras citadas tem como base de sua criação o estranhamento. A gente não entende exatamente o que está acontecendo; temos na mão um ou outro elemento mais concreto que nos permite no mínimo ter curiosidade de saber o que vai acontecer depois, pelo menos na esperança de uma explicação que junte as pecinhas.

Só que o filme te conduz pelas imagens. No livro, as imagens são aquelas que o leitor constrói com base no que foi descrito ou relatado pelo autor. E as imagens do leitor acabam sendo totalmente livres. O livro "Lugares Ogros", de Telma Scherer causou exatamente esse efeito em mim: da vertigem, da confusão e do receio, em cada capítulo, de ter criado uma imagem diferente da necessária para a compreensão do livro. Isso poderia parecer uma crítica negativa ao trabalho de Telma não fosse um detalhe: foi tudo de propósito.



O livro tem 106 páginas. No meu caso as 106 páginas estão repletas de anotações, perguntas, conclusões e post-its. Nunca tinha usado tanta flag num único livro. Posso provar.


A primeira situação que me fisgou foi quando, no prólogo, o narrador (ou narradora, já chegamos nesse ponto) cita uma mulher de vermelho. Ao longo do livro, a referência da mulher de vermelho aparece muitas vezes, algumas de forma mais evidentes atribuindo a simbologia à própria narradora-protagonista-ou-talvez-nem-tanto ou à mulher tagarela atrapalhando as orações no Centro Espírita, que me parece ser um lugar de extrema importância para Roberto, um dos narradores-protagonistas-ou-talvez-nem-tanto.

O causo é que a mulher de vermelho tem uma simbologia muito forte na cultura pop, principalmente depois do sucesso de bilheteria que seria inspiração para as mais insanas teorias da conspiração, Matrix. No filme, enquanto Morpheus explica a Neo sobre a finalidade e os perigos da Matrix, Neo se distrai com uma mulher de vestido vermelho que se destaca entre tantas outras pessoas de roupas escuras. Nessa cena, não fosse o fato de a mulher de vermelho ser uma simulação, Neo teria sido morto pelo Agente Smith. No contexto do uso simbólico da mulher de vermelho, essa personagem representa uma distração em um mundo padronizado em tons de cinza (e essa não é uma referência a mais um filme), o que significa que a autora já nos dá, em um dos primeiros parágrafos do livro, a simbologia da distração.

Assim como na metáfora apresentada em Matrix, a mulher de vermelho - mesmo que não a mesma mulher, ou mesmo que não sempre com o mesmo tipo de vestimenta - acaba aparecendo em momentos-chave do livro, seja atrapalhando os fiéis no Centro, seja atraindo a atenção de outro narrador-protagonista-ou-talvez-nem-tanto.

Temos como elementos concretos uma mulher, estudante universitária, que acaba de ser despejada de seu apartamento e sai dele apenas com uma mochila pesada. Ela está grávida embora esse fato não seja efetivamente explorado de forma contundente. Temos também Jorge e Roberto, dois homens que não apenas são parte da vida da narradora como vez ou outra são eles mesmos narradores. Jorge, por sinal, é o pai da criança. Roberto é espírita. Claudina está internada no mesmo hospital psiquiátrico onde um coletivo de teatro ocupa um espaço. Cecília, a avó, tem Alzheimer. E Maria. Passei o livro inteiro peguntando se Maria era a protagonista inicial, a mulher da mochila, da gravidez, indignada com a greve na faculdade, que cortou a mão lavando um copo, que pegou o ônibus para Vila Nova e que dialoga com alguém que, ao longo do livro, questionei se seria outro personagem, um diário ou o próprio leitor.

Gostei do tom filosófico já de largada do livro: "Lá longe lembrarei apenas das coisas e não dos nomes. Terei pena dos nomes porque eles são vazios". Discordo um pouco da frase porque nomes são a ferramenta inicial da atribuição de significados às coisas, mas a composição da frase me encantou. O que eu concordo é que eu esquecerei mesmo todos os nomes (já esqueço) e isso não diminui a importância dos donos desses nomes para mim. Por sinal, do prólogo saiu uma anotação minha dizendo "prosa poética em estado puro". Também até ali entendi que ela sabia que o parceiro não era o pai da criança. Bom, as coisas não correram como eu previa.

Gosto de colocações abstratas, como quando a narradora reclama que sofre opressão do papel quando recebe um folheto na rua e reflete que "querer coisas pesa". A sensação que deu é que seu despejo não era exatamente literal (era), mas simbólico, que ela sentia a necessidade de fugir de alguma coisa. Um relacionamento abusivo talvez? Mais tarde sabemos que Jorge queria sair com uma determinada mulher para ser visto na faculdade com uma "atriz gostosa". A protagonista (Maria, talvez?) fala de música, fala de teatro, e lá pelas tantas é chamada de escritora por Jorge, o que nos leva à ideia de que sejam pessoas diferentes. O tempo todo.

Sim, a confusão é proposital. Quando entramos com a narradora (uma delas) no ônibus, ela nos descreve o que vê. Em seguida somos jogados a um capítulo, nomeado "Sem número" onde o narrador, narradora ou coisa, se diz um tripé. Tripé de câmera mesmo. Temos o elemento do teatro e da dramaturgia. Imaginei como uma metáfora das percepções da personagem, mas, ao longo da trama, as trocas de narrador me fazem agora crer que talvez a narração seja literalmente da coisa, do tripé.

Voltemos à carne e osso. Telma nos presenteia com "Dói para ser perfeito. Mas eu não me importo com a dor. Não, não me importo. Eu faço meus alongamentos, tomo meus remedinhos, passo as minhas pomadinhas, e passa. A dor passa, fica a precisão. Fica o jeito perfeito de emitir aquela nota. Fica a sensação de naturalidade exuberante que acompanha a boa interpretação". Julgava ser ela, a narradora, talvez Maria, mas uma palavra no masculino me confundiu. Falava de música, achava que ela era quem fazia música. Confesso que não consigo responder se aquela palavra que identifica o narrador masculino foi um erro de digitação ou se trocamos para um narrador desconhecido. Mas um narrador que fala bonito.

Apesar do elogio recém feito do narrador que fala bonito, não há basicamente nenhuma alteração de linguagem entre narradores. Claro que se todos os narradores são provenientes de uma mesma classe, um mesmo cenário sócio-econômico, um mesmo background social, não seria de se estranhar que tenham todos linguagem tão semelhantes, mas ainda assim, o simples fato de não sabermos quem está narrando até que o narrador nos dê um elemento concreto nos priva um tanto da personalidade de cada um. Esse foi o ponto que mais me gerou desordem mental na leitura: todos me pareceram a mesma pessoa, com pequenas distinções mais pontuais, como gênero, ou o fato de Roberto ser espírita, ou a narradora estar realmente revoltada com a greve. Jorge, personagem ou narrador, é o homem que se encantou por Maria, sabemos disso porque ele dá um bolo em Roberto para ficar com ela, mas ao mesmo tempo em que quer ser visto com a atriz gostosa mas não quer nada além disso, também é o cara que fica deslumbrado pela escritora. Ao que tudo indica, as duas mulheres são a mesma pessoa.

Em um determinado ponto, nossa narradora comenta "Olha, Jorge, eu não sou escritora, sou atriz, e era isso. E eu não sei porque tu não gostou. Ah! Por que me chamei de poeta? Por quê? Não fica bem? Só ela pode ser poeta? Eu queria que tu me explicasse o que é que confere esse título honorífico a uma pessoa". Ao final do capítulo, pergunta: "Jorge, por que tu parou de gostar de mim?". Teria Jorge algum fascínio por escritoras que o tenha levado à decepção por ela não o ser de fato? Mas e a atriz com quem ele queria ser visto?

Estamos literalmente na metade do livro. Eu, com meu lápis na mão e minhas flags de post-it, já não sei mais nem quem eu sou. Há um homem poeta. Eu não sei quem ele é. Concluo que Jorge trocou a narradora por Maria. No fim, não me parece que isso se confirma, já que decretei que a narradora e Maria são a mesma pessoa.

Da metade pro fim do livro as vozes de misturam, cada vez mais. Ela, seja quem for, já não está mais no ônibus, fala de tomar uma cerveja com alguém, lá em cima. Só sabemos do ônibus. E da mulher de vermelho. Maria. Que dança, canta, interpreta. "Não faça nada com meu filho", pede Jorge em carta.

Embora mantenha minha queixa da metade da resenha de que as vozes só se misturam dessa forma a ponto de não sabermos quem narra cada capítulo ou descobrirmos através de informações bem pontuais porque faltou, nesse curto espaço de 106 páginas, uma diferenciação mais contundente das personalidades dos personagens, também enxergo um mérito aqui: é uma história contada em ordem não cronológica, de forma não linear, sob os diferentes pontos de vista de todos os envolvidos nela.

Sim, conseguimos montar parte do quebra-cabeça que Telma criou. Essa construção da personalidade dos personagens teria nos facilitado entender que são personagens diferentes, com visões diferentes dos fatos, mas não era essa a intenção da autora. O simples uso da alegoria da mulher de vermelho me deixa segura para dizer que a autora queria mesmo que o livro não fosse uma narrativa como estamos acostumados.

Ao criar uma narrativa dessa natureza, Telma assumiu um risco enorme. Acho louvável. Assim como os diretores citados no começo da resenha, cujas obras dividem opiniões entre os que não entenderam nada e detestaram, os que não entenderam nada e acharam genial exatamente por isso, os que fingem que entenderam por medo de parecer menos inteligentes por não terem entendido e os que entenderam e gostaram ou não da narrativa. O risco de Telma mora exatamente nessa ambiguidade (termo errado, porque são várias opções e não apenas duas, mas vocês entenderam, né?), ela pode tanto ser vista como uma autora brilhante que contou uma história de uma forma tão peculiar que é de se espantar que ela mesma tenha conseguido manter o raciocínio narrativo no livro inteiro, ou ser vista como uma autora que jogou qualquer coisa de qualquer maneira entre aqueles que inclusive abandonarão o livro sem chegar ao capítulo final, em que ela mais ou menos nos explica um pouco melhor quem é quem.

Em termos gerais gosto da ideia de o livro ter várias vozes que contam as histórias a partir do seu ponto de vista. Também não desgosto da ideia de ter capítulos que parecem completamente alheios ao livro - como a existência de Cecília ou a própria Claudina, embora eu aprecie o contexto em que Claudina aparece no livro.

Mas uma coisa é inegável na obra de Telma: ela torna qualquer julgamento de um leitor ou resenhista mais atento bastante difícil. Eu poderia dizer que detestei o livro porque tive muita, MUITA dificuldade de acompanhar as trocas de narradores ou de compreender quem é quem e quem faz o que, mas ao mesmo tempo não posso ignorar que a autora construiu uma narrativa ancorada na confusão, no desencontro, nas várias versões de uma mesma história e em metáforas bem executadas, como da mochila pesada, do partir, paralisar e da própria mulher de vermelho. Como julgar ruim um livro que atingiu os objetivos da autora?

Não tenho resposta a essa pergunta. Se me perguntarem se gostei do livro também não saberei responder. Como qualquer ser humano, não gosto de não entender alguma coisa, de me deparar com algo que em uma primeira vista não me parece fazer nenhum sentido, mas como escritora, leitora e resenhista, também me fascina quem assume riscos e trabalha "fora da caixa". "Lugares Ogros" é, sem dúvida, uma aventura.
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Lugares Ogros
Telma Scherer

Caiaponte Edições: Florianópolis, 2019.
106 páginas
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Telma Scherer é artista e professora do Departamento de Língua e Literatura Vernáculas da UFSC. Como poeta, publicou Desconjunto, Rumor da Casa, Depois da Água e Entre o Vento e o Peso da Página.

~Maya


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