A quebra de qualquer noção de "regra" (e uso aspas porque imposição de regra na arte é quase uma ofensa ao que torna a arte bela ou revolucionária) foi a primeira coisa que me chamou a atenção no livro "Casa dos ossos", de Prisca Agustoni. O livro, editado em 2017 pela Edições Macondo, é para ser lido em um só fôlego. Não apenas por ser um livro curto, mas por suas interligações que unem três partes em um conjunto harmônico.
Na primeira parte, chamada de "Além da Soleira", Prisca explora a fonética das palavras, o seu som, a combinação de sons que tornam seus poemas especiais para uma leitura em voz alta, uma declamação. Prisca não usa pontuação, deixando o leitor escolher onde fazer seus intervalos. É aí que entra a magia da declamação: em uma leitura silenciosa, os poemas podem ser vistos como um bloco único, uniforme. É na necessidade de pausas para renovação do oxigênio que o poema se redesenha ao gosto do leitor.
Esse recurso, tanto da fonética para embelezar a leitura, quanto da ausência da pontuação, faz com que o poema ganhe significados distintos para cada leitor e cada leitura. Inclusive eu mesma testei a leitura de alguns com mudança de espaço de intervalo, e foi uma experiência bem interessante.
O recursos fonéticos ficam claros no poema da página 13, com a semelhança sonora de palavras usadas em vários versos, como "descalça, "cetro", "senda", ou a rima criada do meio do verso ao final do outro: "eu paro perdida abro os olhos / no meio do caminho da vida". Percebe-se que a rima só funciona se a pausa isolar o "perdida" no verso, e o uso da pausa depende exclusivamente da vontade do leitor.
Além de uma construção livre e fascinante dos versos, Prisca, na primeira parte de seu livro, proporciona ao leitor recursos para interagir com os poemas, permitindo que cada peça seja totalmente mutável, adquira significados próprios e novos a cada leitura.
A segunda parte, "Casa dos Ossos", empresta aos versos alguns exemplos de pontuação, mas se difere da primeira parte na exploração de metáforas, inserindo a língua e o corpo em comparações fascinantes do corpo como instrumento da língua. Por língua, vale frisar, me refiro ao português mesmo, e não à língua como parte de nossa anatomia.
Um exemplo muito forte disso está no poema da página 19, onde Prisca, em dado momento do poema, nos diz:
dedos e unhas
na ponta de cada sílaba
são facas sutis que adentram
a língua
para expelir
os unguentos oleosos
do texto
Elementos corporais misturados anatomicamente com elementos textuais, como um organismo vivo que é tanto o corpo em funcionamento quanto o texto em sua construção e em sua vida útil. Como se o texto ignorado, abandonado, pudesse ser comparado ao corpo morto, inanimado.
À página 22, Prisca escreve, em certa parte de seu poema:
Pouco além da porta
rastejam os verbos
entre a língua e o hímen
As metáforas construídas por Prisca conferem vida pulsante ao texto e seus elementos, mas não se restringem a eles. Como na página 28, em que escreve:
tua presença
reduz o cômodo
a um aquário:
quero ar
quero ar
longe de lábios parasitas
Nesse trecho do poema vemos a força claustrofóbica de uma relação abusiva, sufocante, trazendo a relação do diminuto espaço do aquário e a dificuldade de respirar, a sensação de afogamento, que uma prisão psicológica pode causar. Nada ali é literal, não se trata de um pessoa efetivamente presa em um aquário ou vivendo uma situação concreta de afogamento, mas de uma pessoa sufocada por uma realidade opressiva.
Destaco ainda, nessa segunda parte do livro, os versos antes que teu rosto / mergulhe na memória pela simples beleza dessa construção, embora fosse possível tirar daí uma análise mais profunda da metáfora utilizada para a distância, separação ou mesmo tentativa de esquecimento da pessoa a qual o poema se refere.
A terceira parte do livro, "Rubras Veias", embora ainda trabalhe com metáforas como a segunda e com fonética como a primeira, traz um trabalho mais imagético e repleto de simbolismos.
Quando, à página 49, Prisca se compara a um ícone exposto e se vê murchada pelos olhares da multidão representada por uma única pessoa, também contrapõe o símbolo ao dizer que suas palavras murchadas são igualmente duras como os ossos, trabalhando uma contradição simbólica entre o esvaziamento e a rigidez, ambas sinal de um certo grau de sofrimento do emissor.
Entretanto, o simbolismo que mais me atrai e que fecha o livro com chave de ouro faz justamente um trocadilho com o dito popular aqui citado, talvez até de forma proposital (somente a autora poderia confirmar isso), quando encerra seu último poema com tantas e tantas portas / e nenhuma chave.
Eis a discordância do leitor: muitas e muitas chaves são entregues ao leitor ao longo de uma obra que, embora dividida em três partes, se mantém coesa.
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Casa dos ossos
Prisca Agustoni
Juiz de Fora: Macondo Edições, 2017
53 páginas
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Prisca Agustoni é poeta, tradutora, ficcionista e autora de literatura infantojuvenil. Vive entre a Suíça e o Brasil onde trabalha como professora de literatura comparada. Seu trabalho literário se desenvolve em português, francês e italiano.
~Maya
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