quarta-feira, 28 de agosto de 2019

O retrato da poesia brasileira contemporânea


            O mais interessante em se nomear uma reportagem como o retrato da poesia brasileira contemporânea é que se trata de um feito impossível. Um retrato, por definição, é uma imagem estática, o que definitivamente não combina, sob nenhuma hipótese, com uma arte em constante movimento.
            Talvez seja exatamente esse movimento da poesia, perceptível à menor pesquisa pelas redes e saraus espalhados pelo Brasil, que causou tanta polêmica a matéria publicada pela Folha de São Paulo, em abril deste ano (2019) sob assinatura da pesquisadora Mariella Masagão.
            Há quem diga que houve má interpretação de seu texto, mas a verdade é que, ao iniciar com a provocação de que ficou mais difícil escrever poesia em português depois de Fernando Pessoa, a pesquisadora me deixou com a famosa pulga atrás da orelha. Será? Não pela dificuldade em si porque escrever poesia não é uma tarefa fácil, nem depois, nem antes de Fernando Pessoa.
            Poesia é o gênero que mais mexe com paixões. Em minha pesquisa para a composição dessa reportagem, o editor Marcelo Nocelli, da Editora Reformatório trouxe exatamente esse ponto de que existe uma falsa ideia da facilidade de se escrever um poema. Parece simples escolher um monte de palavras bonitas e enfileirar em forma de versos, rimados ou não. Mas não é bem assim, conforme destaca Marcelo, “o poeta deve atingir múltiplos significados, atingindo uma subjetividade que quanto menos dimensionada, melhor, de forma com que a palavra se desvincule de seus significados habituais e alcance diferentes sentidos, sempre repleta de sensorialidade, sentimentalidade, de forma a provocar, surpreender, impactar o leitor, e tudo isso deve ser feito ainda da forma mais bela possível”.
Marcelo Nocelli
Editora Reformatório
            Parece tudo, menos fácil. Ponto para a pesquisadora? Não, porque não foi isso que ela quis dizer. Por mais que pareça que a intenção da reportagem seja reacender uma polêmica superada, o fato é que o artigo dela foi um grande motivador pra mim, poeta ofendida e agora ostentando feliz meu recém-conquistado diploma de jornalista: será que a pesquisadora foi longe o bastante para poder afirmar, através de suas amostragem, tudo o que foi dito no artigo.
            A resposta outra vez é não. E não porque eu tenha me proposto a uma pesquisa acadêmica formal, com anos de leituras e centenas de entrevistas, mas porque estreei um canal (este, por sinal) onde me deparei com poemas de todos os tipos, e me propus a conversar com editores e poetas dos mais variados. A pesquisa ainda foi falha, meu escopo não foi de viés científico, mas jornalístico, porém, foi bem-sucedida o bastante para acalmar a pulga atrás da orelha que vinha cultivando desde abril.
            A poesia contemporânea brasileira é tão diversa que sequer tentar colocar toda ela em uma caixinha com um ou dois rótulos soa como um pecado, uma blasfêmia literária. Não é possível. Nas próprias entrevistas o que não faltou foi variação temática do que está circulando em matéria de poesia pelo nosso território. E isso tendo como base não apenas um grupo muito pequeno de editoras, mas igualmente um grupo limitado de poetas, embora abranjam uma boa fatia do território nacional.
              E é incrivelmente pouco.
            Mas a poesia vem, inegavelmente, ganhando espaço. O Prêmio Jabuti, por exemplo, um dos prêmios de maior prestígio do país, agraciou um livro de poesia em sua última edição. “À Cidade”, de Maílson Furtado, não somente é um livro de poesia como é um livro de poesia independente. Não carrega na capa nenhum selo que poderia lhe conferir qualquer benefício na decisão do júri.
 
Maílson Furtado
          
Maílson, cujo prêmio demonstrou que a poesia está viva, declarou otimismo com o futuro do gênero no Brasil, segundo ele, “o fortalecimento de selos editoriais que publicam com grande qualidade (...) abrem um novo campo de acesso a inúmeros artistas com trabalho no prelo”.
            Exatamente por reconhecer a amplitude do tema – e aspecto que mais me motivou à reportagem – é que restringi a reportagem às editoras independentes que investem fortemente em poesia e poetas independentes que investem a si mesmos. E na semelhança de respostas para uma questão específica foi que entendi que a poesia está não apenas renascendo, como tendo um crescimento forte e avassalador.
            Entre poetas, perguntei porque escrever poesia se as pesquisas dizem que o brasileiro não lê. Foi unânime: porque escrever poesia é uma forma de sobrevivência, é respirar, é resistir. Entre editoras, porque continuar publicando poesias se as pesquisas dizem que o brasileiro não lê. Outra unanimidade: pela crença do poder de transformação da poesia.
            Embora eu tenha optado por iniciar a reportagem com a provocação sobre a amplitude da poesia em relação a um artigo publicado em um espaço com muito mais circulação do que eu conseguirei alcançar com esse texto, a pergunta inicial do meu questionário base para as entrevistas começava exatamente com essa afirmação: o brasileiro não lê. Isso nem de longe é uma verdade. Uma reportagem da Revista Fórum do ano de 2017 já demonstrava um crescimento importante no número de leitores formais – por formal, me refiro ao leitor de livros, porque a palavra “leitor” é imensamente mais abrangente do que isso. Mais do que isso, apontava um aumento expressivo no número de pessoas que têm o desejo de ler ou de ler mais do que costumam.
Andri Carvão
            O poeta Andri Carvão apontou o audiovisual como o primeiro responsável pelo perecimento temporário da poesia, uma vez que as produções não apenas passaram a ocupar mais o tempo livre das pessoas como quando aliadas à literatura, dificilmente se baseiam em poesias. Andri não está errado, existem pesquisas que comprovam isso, embora sempre com dados conflitantes, uma vez que o surgimento do entretenimento de massa atingiu também o público analfabeto, que não era público leitor por motivos óbvios. Entretanto, o próprio Andri comenta que a poesia é oriunda, predominantemente, da tradição oral e foi se elitizando com o surgimento dos tipos móveis, que permitiram produção impressa em larga escala. A partir daí, a poesia se tornou socialmente vista como “propriedade” dos poucos privilegiados que tinham acesso à educação.
            Em pesquisa que realizei para um livro-reportagem em que abarcava o período Romântico, esses dados se confirmam, tendo a poesia um status muito elevado, o que permitiu inclusive que poetas de classes mais pobres pudessem se relacionar com os nobres através da aceitação de suas obras. Na contramão, poetas que falavam ao povo e resgatavam a tradição oral não eram bem vistos pela classe intelectual.
           Falar ao povo não é bem visto pelos aristocratas de qualquer época. Não à toa as universidades públicas viraram alvo de rancor das elites quando os herdeiros das famílias ricas passaram a dividir a sala de aula com os filhos de suas empregadas. A poesia precisou passar por uma transformação nesse sentido, ser reinventada, redescoberta.
            Isso me remete à minha adolescência, em que me assumir poeta era quase como dizer que eu era superior aos demais. A ideia aristocrática, de posse da poesia exclusiva para nobres e intelectuais de alta estirpe afastou muita gente deste gênero por muitos anos. Escrever ou ler poesia se tornou coisa de gente “esnobe”, quando na verdade cada vez mais integrava as ferramentas literárias de quem estava à margem. Os poetas marginais.
            O surgimento de editoras que investem em poesia por acreditar no poder dela é relativamente novo e talvez até desconhecido de muitos poetas, que acabam optando pela independência. Não é o caso de todos, entre os entrevistados têm os poetas que optaram pela independência e os que ainda buscam a oportunidade de assinar um contrato.
Nay de Lucena
            A poeta Ingrid Carrafa, por exemplo, teve a experiência de publicação por editora e acabou escolhendo o modelo independente, uma necessidade que ela sentiu de criar e cuidar de seu material à sua maneira. O cuidado particular também é a motivação de Nay de Lucena, que considera a produção independente mais charmosa e encantadora. Angel Cabeza, hoje em catálogo de editora, iniciou sua carreira de forma independente pela dificuldade de conseguir um contrato como autor desconhecido, assim como Maílson, que viu na independência seu único caminho, e Emely Polli, que reconhece as dificuldades mas não se arrepende das escolhas feitas. O mesmo não aconteceu com Andri Carvão, que se endividou para garantir sua primeira publicação, o que lhe rendeu uma experiência importante; o poeta acredita na importância de se construir um nome antes de partir com pressa a uma publicação.
Emely Polli
            Outros caminhos podem ser trilhados pelos autores, a seu gosto ou conforme as coisas acontecem, como o caso de Delalves Costa, que foi publicando aos poucos, em jornais, coletâneas até que viesse descompromissadamente a primeira edição própria. Hoje amparado por um selo editorial, Delalves trilhou o caminho do contato direto com o leitor, da famosa “cara de pau”, “insistentemente oferecendo meu trabalho, fui a muitas escolas e feiras de livros, nas quais nunca saí sem pelo menos vender uns cinco exemplares”.
            E ele fala sério; está sempre atento às oportunidades. Tão logo anunciei nas redes a ideia do projeto Bibliofilia Cotidiana, ele imediatamente fez contato comigo para entender como funcionaria e foi o primeiro autor a me enviar material para divulgação.
            A se basear pela experiência dos próprios autores independentes, fica claro que a leitura existe, o público existe, o que é fundamental é encontra-lo. É uma defesa contundente de Nathan Magalhães, editor responsável pela Editora Moinhos. Nathan inicia enfaticamente sobre a desimportância dos números, das pesquisas que apontam os baixos hábitos de leitura do brasileiro, simplesmente porque os números nunca vêm acompanhados de um cenário concreto, dos nichos, dos compartilhamentos entre autores e
Nathan Magalhães
Editora Moinhos
leitores, “poesia vende, é achar seu público, é criar público”, defende o editor, aspecto nos quais concordam Tonho França e Wilson Gorj, da Editora Penalux. Inclusive, o comprometimento do autor com o livro e com seu público leitor é um dos fatores mais valorizados pela Moinhos, por exemplo. Relata Nathan: “o que interfere é o que os autores fazem pelo livro. Estamos num tempo em que é necessário, sim, fazer algo”. Outro ponto em comum levantado pelos sócios da Penalux, quando questionados se o gênero do autor interfere nas vendas: “não vemos interferência nas vendas motivadas por gênero, mas sim por posturas. Poetas mais engajados, mais participantes das redes sociais, mais atuantes em saraus e eventos literários tendem a formar um público-leitor maior”.   
 
Tonho França e Wilson Gorj
Editora Penalux
Junto à poeta Isabela Sancho
          
O mesmo sentimento demonstra Larissa Mundin, editora responsável pela Nega Lilu, voltada à valorização daqueles que foram historicamente excluídos pelo mercado literário (embora frise que as portas estão abertas a todos). Larissa declara que “não me intimidam as pesquisas em relação ao leitor. Ações de uma política pública séria e continuada conseguiriam transformar esta realidade de baixa leitura em 20 anos”. A declaração de Larissa faz coro com Eduardo Lacerda, da Editora Patuá, quando aponta que a precarização do acesso à leitura é um projeto público que já perdura mais de 500 anos.
Larissa Mundim
Editora Nega Lilu
            Trocando em miúdos, existem poucos projetos efetivos de incentivo à leitura no país, e sempre com severas dificuldades orçamentárias. Eduardo destaca: “acho muito perigoso dizer que o brasileiro não lê, parece que é algo de nossa natureza, mas não é, não podemos naturalizar isso (...) formar público leitor nunca foi um objetivo no Brasil, pelo contrário. O livro, assim como a educação, a cultura, as outras artes (...) nunca foi uma prioridade, isso é histórico, começa na nossa colonização, passa por 500 anos de história, uma história de descaso com o livro e descaso com o ser humano”. Eduardo e Larissa apontam uma ideia em comum: a desvalorização da cultura é um projeto, e encontram eco não apenas entre outros editores e artistas, mas também entre educadores e o próprio público que insiste na valorização do trabalho realizado pela resistência poética.
            “De forma objetiva, publica-se poesia para se espalhar a esperança e a liberdade, portanto”, pontua Larissa. É exatamente pela noção de que poesia tem o potencial de encontrar no mercado o mesmo espaço de outros gêneros mais valorizados em termos de vendas que
Wallison Gontijo
Editora Impressões de Minas
Wallison Gontijo, da Editora Impressões de Minas não faz qualquer diferenciação, tendo como critério único a qualidade do texto, e não pesquisas que digam o que aparentemente vende mais ou menos. Segundo ele, o mercado está enfrentando dificuldades como um todo, exatamente pelos problemas apontados por Eduardo Lacerda e por Larissa Mundin, não é uma exclusividade da poesia.
            Entretanto, Eduardo Lacerda aponta para a intensa produção poética espalhada pelas redes sociais, mesmo que no mais do que contemporâneo formato do meme – que sim, pode vir em versos. Os compartilhamentos, as redes de contatos traçadas por fibras ópticas e wi-fi já tiraram muito poeta do anonimato. Em um cenário onde a produção e o consumo de conteúdo é constante e globalizado (mesmo que nem sempre de forma positiva), como dizer que o brasileiro não lê?
Mell Renault
            Mas se a ideia é traçar o impossível retrato da poesia contemporânea brasileira, entender o que os poetas estão produzindo e as editoras estão publicando é fundamental. E é aí que o caráter estático do retrato se complica ainda mais. A poeta Mell Renault, que trouxe sua obra à luz por uma pequena editora recém-nascida, acredita na miudez, gosta de trabalhar o pequeno, o micro, sem pretensões de alcançar multidões mas com a intenção única de usar a poesia como sua ferramenta de sobrevivência pessoal e resistência social, mesma lógica de Ingrid Carrafa, em uma icônica frase que resume o sentimento de ambas e de quase todos nós: “a poesia é o respirar na superfície para um afogado”.

Ingrid Carrafa

            Andri Carvão aponta que sua poesia se adapta ao período em que se está vivendo, e isso é também visível no mercado. O destroçamento de uma ideia de nação democrática, a polarização, a banalização do ódio, a precarização do desenvolvimento e a criminalização da pobreza têm servido de vasto material simbólico para a produção poética nacional. O avanço totalitário que atinge a política global é uma ferramenta que afasta a arte de uma função exclusiva de ser bela e se transforma em protesto, em resistência, em um grito de liberdade.
            Não à toa, entre os poetas entrevistados, houve uma maioria de respostas no sentido de um trabalho voltado à denúncia, à revolta. Temas sociais e políticos predominam entre eles. Já entre os editores, surpreendentemente, as poesias românticas ou de sofrimento pessoal foram muito citadas como tema recorrente, para desgosto de alguns, que enxergam a urgência da arte de protesto no momento atual do país.
            O movimento que se vê, entretanto, leva a crer que ainda acontecerá um aumento no número de poetas e obras poéticas dedicadas à política, ao protesto. Os slams, as competições de rima, a chegada dos saraus nas periferias e a chegada dos poetas periféricos aos eventos antes elitizados demonstram com força esse movimento, de suma importância para a cultura nacional.
Delalves Costa
            As ações no sentido da declamação inflamada, de denúncia social, foram citadas por vários dos entrevistados, demonstrando que esse movimento está sendo sim percebido, e valorizado. Esse movimento é também o resgate da tradição oral, que parecia estar se perdendo com as novas gerações. O poeta Delalves Costa, por exemplo, se disse profundamente influenciado pelo avô que, analfabeto, era reconhecido por contar causos de forma rimada entre amigos e vizinhos. Sem saber escrever uma palavra, o Sr. Fermínio José Alves era poeta.
Eduardo Lacerda
Editora Patuá
            Da mesma forma, Eduardo Lacerda pontuou que não podemos ser hipócritas de negar que o mercado ainda é dominado pela ideia de que o bom escritor é o homem branco, heterossexual, classe média e residente do sudeste ou sul do país. Essa realidade, conforme aponta Larissa Mundim, começa a mudar com o fortalecimento das editoras independentes, que abriram as portas para a diversidade. Eduardo afirma que “temos que lembrar dos saraus, dos slams, dos cordéis, dos clubes de leitura. A leitura é uma forma de resistência, nós gostamos de ler, os brasileiros gostam de literatura, só muita gente não teve acesso ainda, mas terá, faremos ter”.
Angel Cabeza
            A grande questão quando se fala sobre poesia contemporânea brasileira é que não existe uma verdade única, um retrato estático. O poeta Angel Cabeza pontua isso quando aponta que existe “uma briga ideológica e intelectual entre autores, como se cada um guardasse uma verdade. Parece que todos possuem um manual de como obter sucesso. ‘A poesia deve ser isso’, ‘a poesia deve ser aquilo...’, ‘é preciso escrever assim’. Só que esquecem que não existe uma verdade para o poema, apenas matéria bruta em lapidação”.
            Talvez eu cometa um equívoco em dizer que a poesia brasileira nunca foi tão diversa, mas não erro em dizer que ela o é. Sua expressão é mutável, existem poetas espalhados por literalmente o país inteiro, muitos ainda anônimos por diversos motivos, cada um exprimindo seus temas de ordem particular ou coletiva, e produzindo muito, incessantemente; assim como frequentemente abrem novas editoras que podem contribuir ainda mais para que a poesia brasileira contemporânea não tenha um retrato, mas um filme inteiro, um longa-metragem, uma série.
            O que é mais relevante aos autores e editores nesse momento já não são as brigas de ego que sabemos que acontecem, ou os debates infrutíferos, mas o que estamos fazendo para manter a poesia viva, atuante e cada vez mais acessível. Nada, nesse momento, é mais importante do que resistir.

Agradecimentos

Editores:
Eduardo Lacerda (Patuá)
Larissa Mundim (Nega Lilu)
Marcelo Nocelli (Reformartório)
Nathan Magalhães (Moinhos)
Tonho França e Wilson Gorj (Penalux)
Wallison Gontijo (Impressões de Minas)

Poetas:
Andri Carvão
Angel Cabeza
Delalves Costa
Emely Polli
Ingrid Carrafa
Maílson Furtado Viana
Mell Renault
Nay de Lucena

Um agradecimentos aos amigos e conhecidos que indicaram editores e poetas para essa reportagem.

Maya Falks é escritora, poeta, publicitária e jornalista. Idealizadora e resenhista do projeto Bibliofilia Cotidiana. Essa é sua primeira reportagem oficialmente como jornalista graduada.




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