sexta-feira, 18 de outubro de 2019

Anti-minimalismo

Nada contra o clichê, o previsível, às vezes fazemos uma leitura de relaxamento querendo que nas próximas páginas esteja exatamente o que a gente espera que esteja. Bom, definitivamente não é o caso do livro "Lente de aumento para coisas grandes", de Sabrina Dalbelo.



Passamos a vida ouvindo que devemos dar valor às pequenas coisas, os pequenos gestos, os pequenos momentos, uma hipervalorização do minimalismo. Na contramão do microsentimentalismo, Sabrina inverte o óbvio e traz à tona o valor das grandes coisas. Das coisas gigantescas.

Justamente movida por essa ideia de que tudo o que é belo e sublime - e que deve ser valorizado - é pequeno que julguei que o livro de Sabrina seria uma sátira, talvez uma grande brincadeira com coisas materialmente grandes, até pelo título, afinal, quem precisa de lente de aumento para ver algo grande?

E então, durante a leitura, descobri que precisamos mesmo. Talvez até de um chacoalhão.

Sabrina não inventou a roda em seu livro. Nem transformou tudo em uma grande piada. Nem fez uma sátira com objetos grandes. Ela apenas subverteu a lógica do minimalismo. E fez muito mais sentido. A valorização das pequenas coisas virou a valorização das coisas grandes sob a ponta da caneta de Sabrina. A amizade não é algo pequeno, o amor não é algo pequeno, o nascer do sol não é algo pequeno. São grandes, são gigantes, e passam despercebidos, ou passam como as "pequenas coisas da vida", daí a ideia de lente de aumento.

Já que estamos falando de lente, o livro é dividido em quatro focos: a observação, o barulho, a descoberta e a identificação das coisas grandes.

Da valorização do pequeno, observamos os grandes que:
- o carinho cura
- a desigualdade fere
- o amor basta
- a saudade preenche
- o empoderamento completa
- o amor não é concreto
- o maior poder é o respeito
- falhar não é feio
- o corpo suporta uma vida bem vivida
- coisas boas acontecem quando nos permitimos
- velhice prefere o que é verdadeiro
- o que permanece das pessoas é o amor que existiu
- amizade é aquela que te guia
- existem coisas que não podem ser explicadas

Grande também é o lirismo que Sabrina emprega na sua observação; "não parece mas / há caridade / em doar saudade / a um coração vazio".

Também há crítica no seu trocadilho "ofensa / rima com crença / não por nada". O poema em questão se chama "rima pobre" e posso até concorda que o seja, mas nesses três pequenos versos há um significado gigante em um momento social tão crítico onde grupos religiosos ameaçam direitos civis de populações inteiras em um Estado que deveria ser laico.

Esse poema é um retrato simbólico bastante adequado para o livro como um todo - não o único, por óbvio - mas é um poema extremamente curto, três versos, poucas palavras e - nas palavras da própria autora - rima pobre - mas com um significado que transcende a página, a obra e essa resenha.

É o reflexo da antítese, do anti-minimalismo a que se propõe o livro, enxergar o grande a partir daquilo que se considera pequeno, e o livro tem grande êxito nessa missão, caprichando ainda mais nas negativas do poema "teoria da relatividade das coisas", que começa com "pouco amor não é falta de amor" e segue com uma série de exemplo de coisas que nem sempre são o que julgamos ser, como "aperto de mão forte não é cumprimento leal", "ter uma bíblia debaixo do braço não santifica ninguém", "cair não é para os cabelos" e termina com "não exclusivamente".

Relativiza o pequeno, relativiza o valor, relativiza as coisas.

E segue para o barulho das coisas, onde:
- o conto de fadas pode virar violência
- o sorriso ao indigente faz bem para os dois
- conexão olho no olho tem mais alcance que internet
- a vida é feita de mortes
- quem mais grita é quem tem menos a dizer
- falar difícil não significa ter conteúdo

Assim como a gente não percebe que o germinar de uma flor entre as pedras de uma calçada é um processo gigante de superação de uma semente e considera que apreciar a flor, já viva, é uma das pequenas coisas boas da vida, também não nos damos conta que, na vida miserável daqueles renegados pelo sistema, à margem da sociedade, um sorriso é muito mais do que um sorriso, é um sentimento de reinclusão.

Como dizer que esse sorriso é algo pequeno? Parece um gesto pequeno, contrair músculos do rosto para que os lábios fiquem arqueados. Simples, claro, mas para aquele que recebe o sorriso, esse gesto vai muito além, talvez seja até impossível de ser explicado. Precisamos dessa lente de aumento para que possamos enxergar o quão gigante é resgatar a dignidade de um ser humano com um sorriso.

Sabrina segue, denuncia, faz ela mesma o barulho. Diz ela "eu moro no subúrbio / da literatura" em denúncia a um elitismo que vem sendo combatido, mas que ainda se faz presente nos meios literários e afasta das livrarias e saraus as pessoas mais simples, quando sabemos que existe muita história e poesia às margens da dita elite intelectual. Por sinal, alguns dos maiores pesquisadores de literatura que conheço vieram de fora dessa tal elite. O mesmo posso dizer de tantos e tantas poetas que vêm ganhando cada vez mais espaço - e merecidíssimo espaço - pela qualidade de seu trabalho.

Sabrina também descobre as coisas grandes. Descobrimos juntas que
- enxergar é mais do que apenas ver
- tristeza afeta a visão
- um dia é um ciclo completo da vida
- simplicidade pode ser muita coisa
- ou tudo aquilo que é mais difícil definir, como
"o sapato sujo / conta sobre a estrada / não sobre os passos dados"

A gente se descobre nas coisas grandes, como a importância do partir, não apenas para encarar o desconhecido, mas para ter de onde voltar. Ou que o crescimento vai muito além das mudanças do corpo, mas da força imposta pela própria vida.

E quando chegamos na identificação das coisas grandes, Sabrina arrebata com uma apresentação direta de tudo aquilo que nem sempre prestamos atenção.
"- Quem é você? - perguntou ao abuso sexual.
- Sou um bloco de montar que não se encaixa nas outras peças. Não me importo, forço, nem que as quebre."

Há espaço para seriedade, há espaço para brincadeira:
"- Quem é você? - perguntou à rebeldia.
Ela saiu esbravejando, colocou uma placa de 'não perturbe' na porta e nunca respondeu."

"Lente de aumento para coisas grandes" me surpreendeu, não pela qualidade porque isso eu já esperava de Sabrina, mas pela quebra da expectativa sobre o tema. Fazer enxergar o gigantesco oculto no falso minimalismo. Jamais tinha parado para refletir sobre isso. A obra transcendeu à poesia nela impressa. É uma boa reflexão nesses tempos corridos onde temos que nos forçar a lembrar de admirar um pôr do sol vez ou outra para sobreviver ao caos. E o pôr do sol não é algo pequeno, nada pequeno.

Nada nesse livro é pequeno, nem o menor de seus versos.
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Lente de aumento para coisas grandes
Sabrina Dalbelo

Penalux: Guaratinguetá, 2018
113 páginas
Destaque para ilustrações de Eduardo Sussumo Smozono
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Sabrina Dalbelo é gaúcha, servidora do Ministério Público Federal e apaixonada por poesia, já tendo participado de antologias e publicado diversos de seus textos em páginas virtuais.

~Maya


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4 comentários:

  1. Maya,
    Eu acabei de ler a resenha e estou sentindo meus músculos da face doloridos porque estou há tanto tempo sorrindo, sorrindo muito, sorrindo direto.
    A tua leitura foi profunda, sei pelos detalhes da resenha. Mas a resenha é mais que isso, mais que profunda, ela remonta ao dia em que eu estava tomando banho e tirando o meu tempo para chegar a um nome para o livro.
    Afinal, que título resumiria essa intenção de mostrar que há tanta coisa grande e importante para as quais a gente nem olha mais, nem percebe. "E se colocássemos uma lente de aumento? Para ver o grande? Sim, às vezes é preciso." E daí veio a ideia.
    Eu fiquei emocionada com a generosidade da tua leitura e da tua análise e muito feliz diante da clareza com que tu expôs do que é feito o meu livro, o qual, como não poderia deixar de ser, traduz muito do que escrevo.
    Eu acredito que pode se dizer muito em poucas palavras, mas amei ler cada uma inserida nesse texto incrível, que diz tanto, longo, longo... que diz tanto e é longo.
    Obrigada, para sempre!

    Sabrina Dalbelo

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    Respostas
    1. Que coisa maravilhosa ler isso!! Muito obrigada, é o tipo de reação que faz esse trabalho valer a pena!

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