segunda-feira, 14 de outubro de 2019

Musicalidade concreta

Este blog, sempre tão movimentado, viveu seus dias de silêncio. Mas o motivo foi nobre: passei alguns dias sem acesso ao meu computador por causa da pilha de livros que se acumulou sobre minha escrivaninha enquanto meu tempo na Feira do Livro local me impedia de organizar a biblioteca. A coisa por aqui ainda não está 100%, mas o bastante para retomar nosso espaço literário.

Nesse período ausente, a leitura foi do livro "Um sol para cada montanha", uma coletânea poética de Andri Carvão, um querido amigo que conheci ainda ano passado e tive a honra de contar com sua presença no lançamento do meu último livro, em São Paulo. Na reportagem que fiz para este blog na ocasião de minha formatura em jornalismo, Andri, como um dos entrevistados entre os poetas com publicação independente, comentou que a escolha do modelo não foi bem uma escolha, mas uma falta de alternativa, já que não tinha conseguido uma editora para a publicação do seu primeiro livro.

Atualmente, Andri já está em processo de edição de outras obras com contratos assinados. Não conheço o conteúdo das obras em questão, mas depois da leitura de "Um sol para cada montanha", ficou claro pra mim o motivo das dificuldades de Andri em publicar essa obra específica: o movimento ao qual boa parte de seus poemas pertencem.



Andri, uma mistura de poeta com artista plástico, nos apresenta a mais pura poesia concreta. Uma poesia visual que mistura elementos diversos, formas, rimas e repetições de palavras, versos que, a um olhar rápido parecem idênticos mas não o são. 

A poesia concreta foi um movimento de vanguarda, com um caráter experimental, que colocou o universo literário de pernas pro ar com a quebra do poema lírico com o uso de uma linguagem visual. Seu grande marco no Brasil foi a partir da década de 1950, como herança dos modernistas, em especial do trabalho de Oswald de Andrade. Embora o movimento tenha deixado nomes de peso como herdeiros do estilo, não é uma poesia de fácil leitura ou fácil aceitação comercial, daí a dificuldade de publicação para um autor desconhecido.

A forma como Andri trabalhou seus versos na obra, e em especial na segunda parte que é integralmente de poesia visual é uma herança direta do legado da Semana de Arte Moderna de 1922, demonstrando que mesmo que o poeta tenha abandonado as artes visuais para abraçar a literatura, as artes visuais abraçaram sua literatura junto.

Me chamou a atenção, entretanto, o texto introdutório do livro, onde Andri conta um pouco de como surgiu a obra, deixando claro pra mim que o autor tem jeito pra uma prosa poética de qualidade. Relata uma adolescência problemática e o quanto esse livro é fruto justamente desse enfrentamento de uma realidade delicada. Talvez exatamente por isso alguns poemas tenham esses ares mais imaturos, talvez um tanto viscerais de quem está usando o papel e a caneta como arma de sobrevivência. A imaturidade aqui não é um demérito; nada que contribua com uma jornada comprometida com o crescimento é demérito.

Seus problemas trazidos à tona em versos começam a se tornar evidentes no poema "autorretrato com cara de paisagem", onde Andri demonstra claramente problemas de autoimagem, "O espelho é o oposto / do meu rosto". 

A partir do poema "duas quadras", percebi uma tendência que permaneceria durante toda a terceira parte do livro, composta de versos mais densos, poesias mais longas e, digamos, revoltas: existe uma musicalidade latente em seus poemas. Consigo imaginar facilmente uma banda de rock adaptando vários de seus poemas para os ritmos típicos dos anos 80 com refrões que grudam e rimas que repetimos 30 anos depois.

Além do aspecto concretista/visual e da musicalidade de seus poemas, também percebi que Andri conta histórias em alguns de seus poemas, que poderiam ser facilmente transformados em prosa. Como o texto introdutório demonstrou sua capacidade para a prosa, fico curiosa de ver como Andri adaptaria essas mesmas poesias em contos. Algo me diz que ficariam muito bons.

A partir daí tivemos características bastante pontuais no trabalho de Andri que merecem destaque. O poema "funerária & pintura" por exemplo compara de forma magistral grandes obras de pintura dos maiores nomes das artes de todos os tempos com poesia. Comparar não seria o termo ideal, mas perseguir, como Andri diz, em outras palavras. Todas as artes buscam a poesia, de uma forma ou de outra, formalmente ou não. Vejo sentido nisso.

Certamente esse poema poderia render uma discussão de horas com aqueles que acham que não gostam de poesia porque poesia é o gênero mais incompreendido das artes, o mais complexo de se julgar, o que mais depende de mil aspectos pessoais do leitor para conquista-lo. E apesar disso, o mais presente em todas as manifestações.

De forma pontual, meu poema favorito é disparado o poema "réquiem", o qual deixo a vocês na voz da poeta Mell Renault e produção de Carlos Figueiredo, da Cine Book:



Em termos gerais, a obra de Andri reflete com força a influência das artes visuais e concretas que ele traz de sua formação, trabalhando muito o jogo de palavras pela sua sonoridade ou forma, buscando um conjunto cuja harmonia nem sempre é o foco, como quando busca demonstrar sua revolta com problemas sociais através de poemas que incomodam, que causam desconforto em seus trocadilhos propositalmente trabalhados pra trazer mal-estar.

É uma obra de formação, de um poeta inconformado, de um artista que enxerga e transporta poesia para a forma, que transforma letra em desenho e desenho em palavra.
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Um sol para cada montanha
Andri Carvão

Chiado. São Paulo, 2018.
193 páginas
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Andri Carvão cursou Artes Plásticas na Escola de Arte Fego Camargo, em Taubaté, na Fundação das Artes de São Caetano do Sul e na EPA - Escola Panamericana de Arte (SP). Participou de diversas antologias, revistas e saraus literários e atualmente é graduando em Letras pela USP.

~Maya


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