Embora o título e a capa já nos avisem que será um encontro com histórias com um pé no universo fantástico, nem se tivesse um texto introdutório explicando a proposta do livro chegaríamos nele realmente preparados para as surpresas que Eduardo nos preparou. Nem sempre uma narrativa contém algum significado escondido, uma metáfora, uma lição, uma mensagem edificante em suas entrelinhas, as vezes uma narrativa é apenas uma história a ser degustada, e não posso afirmar qual dos casos se enquadra nas histórias que Eduardo nos conta em Estados Alucinatórios, mas o fato é que encontrei muita coisa em histórias que misturam realismo e fantasia (ou absurdo) em narrativas incrivelmente bem desenvolvidas.
O livro começa já com uma história inusitada: Samuel é um jovem que conviveu quase a vida toda com um demônio no corpo. Longe de ser uma história de terror, é uma história com toques cômicos e repleta de metáforas. Achei simplista concluir que poderia se tratar de um amigo imaginário ou até mesmo reduzir a narrativa a uma mensagem sobre os "demônios interiores", embora isso se faça presente quando o demônio que habita Samuel influencia seu comportamento o suficiente para prejudicar alguns aspectos da sua vida.
Mas o demônio, de certa forma, também representa consciência, como uma companhia, a voz da razão e da perdição em um único ser acompanhando um garoto até então solitário. De tão solitário, o rapaz se torna amigo de seu demônio, provocando um desfecho tão hilário quanto triste, dependendo o ponto de vista.
Já de imediato, o primeiro conto me chamou a atenção exatamente pela já mencionada qualidade narrativa. Eduardo não se utiliza de recursos poéticos, que geralmente trazem elementos mais dramáticos e que, pessoalmente, me agradam muito, nem explora de forma escancarada o escracho, o cômico. É a ironia fina, de entrelinha, que conduz suas narrativas. E não somente do primeiro conto, mas praticamente do livro inteiro, fazendo com que as histórias trabalhem tanto o drama quanto o humor sem explorar recursos de forma forçada. É tudo muito natural.
Isso grita ainda mais ao olhos quando conhecemos o homem que adotou um crocodilo. Junior, o crocodilo, é, como qualquer outro crocodilo, um predador. Mas é um predador tal qual o homem, e, por isso, embora homem e crocodilo estejam distantes em formas físicas - o crocodilo vive em um aquário - se aproximam enquanto predadores. Mas não só isso, o narrador, "pai" de Junior, o ensina a falar e o presenteia com uma televisão, trazendo, em uma história que parece sem cabimento - um homem tratando como filho um crocodilo que fala, um debate atual: manipulação midiática.
Dias e dias exposto à influência da mídia, da televisão ligada o dia todo como sua única diversão fazem com que Junior, o "filho", deseje "caçar" um comunista. E aí o narrador se vale de todo tipo de estereótipo para atender os desejos do "filho" - ironizando a ideia de um "pai de pet", afinal, nesse caso, ele efetivamente educa, cria e alimenta o animal. O fato de o pai planejar a caçada para atender ao desejo selvagem do crocodilo de devorar um comunista devido ao ódio do animal criado pela influência da mídia mostram o quanto a selvageria de ambos não está muito distante.
De todo o livro, entretanto, meu conto favorito é "Blattaria". A verdade é que gostei do livro todo, teve um ou dois contos que não me impressionaram tanto quanto os outros embora não tenha deixado de gostar por isso, mas "Blattaria" me arrebatou. Além da narrativa fascinante que prende a atenção do início ao fim, de uma história extremamente bem contada, o final do conto não apenas me levou aos prantos como me obrigou a largar o livro por alguns minutos e ficar olhando pras paredes até assimilar o que tinha acabado de ler.
Por óbvio não vou contar o final do conto, mas a história relata a rotina insana de uma família de quatro pessoas, sendo pai, mãe e duas crianças - a mais velha é a narradora - residindo em uma casa muito antiga que sofre com a infestação de baratas. A narradora estuda as baratas, descobre as espécies e ela, o irmão pequeno e a mãe, entram em uma guerra com os insetos que é interrompida pelo pai, que inicia uma estranha relação de afeição pelos bichos.
Inusitado, sem dúvida. Muito bem escrito, como os demais. Justamente por se tratar de um livro de mexe com o fantástico, que traz o improvável para a realidade palpável, li o conto tentando adivinhar o que poderia acontecer com essa família. Se tornaria o pai um rei das baratas? Seria "Blattaria" uma releitura contemporânea de "A Metamorfose", de Kafka? Tudo era possível, e nada me preparou para o verdadeiro desfecho. Aplausos a Eduardo, que certamente previu que o leitor esperaria um final apoteótico e nos estapeou as fuças de forma extremamente competente. "Blatteria" entra para minha lista de contos favoritos, não do livro, da vida.
Mas claro que não para por aí, estamos só na página 73 de um livro de 200 páginas. O conto seguinte, "Um sonho chinês", não ficou pra trás no quesito qualidade narrativa. O grande destaque nesse conto - e que merece menção honrosa no meu ranking de melhores contos - é a criatividade do autor. Na história, o narrador sofre com algum distúrbio que o impede de se manter acordado muito tempo. Enquanto dorme, ele passa a viver a vida de outra pessoa, um rapaz chinês. A coisa é tão doida, tão inesperada, que eu fiquei mais tempo imaginando o que se passou na cabeça do autor enquanto escrevia esse conto do que efetivamente navegando por ele.
Já em "Pessoa Física", retomamos as metáforas explorando o mundo consumista onde literalmente as marcas fazem a festa enquanto o homem vive de pagar as contas. O que mais fascina nesse conto é a literalidade da metáfora, acho que nunca tinha visto uma metáfora ser usada de forma tão literal - capacidade de exploração do universo fantástico definitivamente é um mérito incontestável de Eduardo.
O mesmo acontece em "Ofertório". A narração aplicada nesse conto é uma ferramenta poderosa no efeito que ele causa no leitor, já que o narrador responde a terceiros mas não temos as vozes desses terceiros. Os motivos também fazem parte do próprio tema do conto: os terceiros são os pecadores que serão sacrificados em purificação de seus pecados através da encenação de famosas passagens bíblicas. Como pecadores, embora o narrador interaja com eles, eles não têm voz. O "não ter voz" não é literal dentro do conto, já que o narrador os escuta, mas o autor priva o leitor de escuta-los, garantindo que sua voz não seja ouvida e essa ideia da ausência de seus direitos por serem "inimigos" do poder vigente fique evidente. Estratégia brilhante. E claro, conto chocante, explorando a hipocrisia de um fanatismo altamente letal.
O último conto que vou tecer comentários aqui, até para que vocês também possam descobrir os demais por conta própria é o único que foge 100% da realidade, já que narra a história de uma família de porcos. Da realidade palpável, mas não metafórica, já que os porcos, no conto, tomaram o lugar dos homens, considerados uma raça inferior e extinta. De imediato me remeteu à Revolução dos Bichos, de George Orwell, embora não tenha muita relação direta uma história com a outra. Entretanto, o simbolismo que se usa do animal porco me faz crer que a escolha deste para a família do conto de Eduardo não tenha sido em vão (e triste, porque porcos mesmo são animais dóceis).
Já nas primeiras linhas do conto, ficou claro que o conto, onde um dos leitões começa a demonstrar trejeitos humanos, o que é visto como uma aberração pela sociedade porca, é na verdade uma metáfora com a homossexualidade. Até mesmo a forma depreciativa com que o pai porco descreve a sensibilidade de seu filho é semelhante ao que vemos homofóbicos falando de homossexuais. O autor ainda escolhe o termo "homossapientes" para descrever os porcos humanizados. Ok, sabemos que o termo se refere à espécie humana, homo sapiens, mas a escolha foi providencial para uma associação mais direta.
As grandes marcas de Estados Alucinatórios são, sem dúvida, a capacidade narrativa e a criatividade do autor. Começamos cada conto sem fazer ideia de pra onde ele vai nos conduzir, ou de onde ele tirou uma ideia dessas, e somos levados por toda a história de forma suave, quase sem perceber. Apelidei esse tipo de narrativa de "leitura escorregadia"; não há pedras no caminho, a leitura flui e, quando você menos espera, chega ao desfecho. Um livro fascinante tanto por histórias divertidas quanto por metáforas muito bem construídas, narradores fortes, situações inusitadas e reflexões. E alucinações, porque essa também é a ideia.
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Estados Alucinatórios
Eduardo Sabino
Caos & Letras: Nova Lima, 2019
200 páginas
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Eduardo Sabino nasceu em Nova Lima, Minas Gerais, em 1986. É autor dos livros de contos Naufrágio entre Amigos (Patuá, 2016) e Ideias Noturnas sobre a Grandeza dos Dias (Novo Século, 2009) e recebeu o prêmio Brasil em Prosa 2015 pelo conto "Sombras".
~Maya
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Eu vi que no mesmo dia dessa resenha, foi publicada outra sobre esse livro.
ResponderExcluirEu gosto muito de literatura fantástica. Sem dúvidas, parece um bom livro!
Obrigada pela resenha!