Cansada, doente, preocupada com o público do blog, abri os e-mails onde recebo material dos autores que querem figurar nesse espaço e fui ao material de Rafael Mendes. Não era dia de publicação de autores, mas ontem era dia de resenha e não deu, fazer o que?
Nessas horas é que o destino gosta de nos dar boas surpresas, penso eu, porque abri o material do Rafael e me deparei com versos que me abraçaram a alma. Uma mistura fascinante de doçura e revolta, desde escancarar a cafonice de uma rima pobre a preferir a rima pobre à necessidade da denúncia sobre a realidade em que vivemos.
Rafael tem um toque visceral em sua suavidade que muito me agrada. Foi um presente, para um dia como hoje, selecionar poemas de Rafael para esse espaço.
amor & dor
quantas vezes já se rimou amor e dor? a rima,
ainda que pobre de criatividade, enquanto afirmação,
ergue questionamento ou dúvida? desde a juventude
a humanidade debate a aspereza do amor.
tornou-se mais calmo como o lusco-fusco no verão,
ou ainda resultou inútil, carrega o mundo nas costas?
ainda existe amor, dor, pernas cansadas,
desvario da perda. ainda capazes de amar,
num tempo que exala ódio e barbárie.
existem heróis ou somos todos párias da passividade
diante da revolta e do amor — é tempo de silêncio.
haja amor, haja ação, a despeito do banquete
tosco cuspido das urnas, das fezes. antes rimar
amor e dor que vibrar diante da morte do irmão,
antes um rima gasta que cálice de sangue e cortes.
o amor, rio ganges maculado — ainda sagrado.
não cantaremos o medo, cabem ainda notas de amor.
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quarenta e nove
i
teus olhos verdes, meu pai
marcados por desesperança
e resignação dos fortes
diversos solavancos da vida
passaram primeiro por teus
olhos verdes, meu pai
haveria de ser verde
o filtro de tua esperança
ii
não nasci com pepitas de turmalina
penduradas nas cavidades de minha face
aprendi, ao olhar teus olhos, que o verde
transmuta entre a vida e a morte
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a sauna
pior do que a ausência do amor, a memória do amor - lygia fagundes telles
nem uma vez mostrou-me seus olhos de desejo adormecido,
nas suas costas não descansei meus lábios, não anotei o compasso de
suas falanges, seu umbigo não escondeu meus presságios de morte
quando apareceu como sonho, devaneio e embriaguez,
não foi nada mais que um pequeno aviso na parede opaca,
"o quadro está em restauração, desculpe-nos pelo transtorno";,
o espaço quase todo preenchido por obras de van gogh, tarsila, basquiat,
e meu olhar fixo e perdido na ausência de sua materialidade
me desfiz dos diários com nossos planos, das gravuras onde talhei nossos pecados,
dos jasmins que plantou no parapeito da alcova, dos temperos trazidos da índia
e do amazonas, livrei-me até do busto de santo antônio
os médicos todos exconjuraram os requerimentos escritos sob
a regência de uma febre lancinante — pedia o brilho opaco da amnésia, o desvario
libertador dos loucos. embarquei em barafundas propositais e inadvertidas,
vesti-me de quixote, viajei até as ilhas de crusoe, sorvi o caldo espesso
das vísceras de macunaíma, naufraguei naus de colombo
sempre a lembrança cintilante de nosso amor, que bem pode ter sido
alucinação e cansaço da quarta-feira de cinzas
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Rafael Mendes foi criado entre São Paulo e Franco da Rocha, entre a cidade e o quase interior. Reside em Dublin desde 2016. em 2018 veio sua primeira coletânea “um ensaio sobre o belo e o caos”, lançado na Europa pela editora urutau. Em outubro de 2019, terá poemas publicados na antologia “writing home: the new irish poets”, pela Dedalus Press na Irlanda. Seus poemas já foram publicados pela revista Ruído Manifesto, Revista Gueto, Literatura & Fechadura, entre outras além de rádios e saraus na irlanda.
~Maya
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