sexta-feira, 4 de outubro de 2019

Aplausos

Assim como tantos, Moisés Spiguel se jogou na literatura depois da aposentadoria. Não só na literatura, mas nas artes como um todo, abrindo um grupo de teatro, experiência que certamente inspirou o conto enviado por ele para estrelar o post de hoje do Bibliofilia.

Embora tenha me contado que já publicou um livro com contos de humor, o texto enviado é inédito, exclusivo para os leitores do Bibliofilia, e, embora não seja de humor nem explore um tema que inspire graça, é possível perceber seu sarcasmo e inclinação para a comédia.

Fiquem agora com o conto inédito de Moisés Spiguel!

AMANHÃ SERÁ OUTRO DIA.

Desta vez, quando voltou, Vanderlei não parecia disposto para conversa. Mas Luis insistia. Trancados naquele cubículo minúsculo e úmido, o silêncio era pesado e opressor.
— Como é que foi hoje? Está muito machucado? Você está bem? Você falou alguma coisa?
Luis parecia mais interessado em distrair do que interpelar.
Vanderlei suspirou. Limpou com a manga o sangue que escorria da boca.
— Estou bem. Não estou com vontade de conversar. Não falei quase nada lá.
Luis pareceu surpreso.
— Puta que o pariu! Como não falou quase nada?! Quer dizer que alguma coisa você falou! Não me diga que entregou alguém!
Vanderlei permaneceu em silêncio por algum tempo. Depois, não se conteve.
— Pra você é fácil, não é? Não te levam pra lá todo dia como levam a mim!
Luis disparou.
— Eles sabem que nunca peguei em armas como você, porra! Sempre fui um simples simpatizante. Já investigaram e sabem que eu nunca tive contato com grupos armados. Me mantém aqui, não sei por que.
Vanderlei continuava abalado, mas ainda se dispôs a responder.
— É. Lembro quando você foi levado para interrogatório. Foi uma única vez. E não me pareceu nada mal quando voltou.
Luis aparentou estar ofendido
— O que você está insinuando?
Vanderlei não estava disposto a discutir.
— Nada. Só comentei. Mas porque você se interessa tanto se entreguei, ou não, alguém?
Quase sem forças, silenciou e fechou os olhos. Luis pensou que tivesse adormecido. Mas Vanderlei continuou.
— Usei o truque de sempre. Só dei nomes dos que já foram mortos pela repressão, e de outros já conhecidos pela polícia, e que sei que estão foragidos. Mas parece que já manjaram a coisa. Pararam por hoje.
— Pararam por quê? Ainda é cedo. Me parece que é pouco mais do meio-dia — estranhou Luis.
O olhar de Vanderlei ao seu companheiro de cela demonstrava quão pouco confiava nele. Mas era visível que em seu estado físico e mental, só queria ser deixado em paz para poder talvez dormir um pouco. A única maneira era responder as perguntas o mais rápido possível.
— Houve certo atrito entre o coronel e o dono da empreiteira que estava assistindo. Eu tinha desmaiado, mas logo acordei com o barulho das vozes, sem que percebessem. Estavam discutindo. Escutei o empresário dizendo: “Não pode interromper agora! Mais um pouco e ele despejaria tudo!”. O coronel tentava justificar: “Não posso deixar de ir à formatura da minha filha. Haverá entrega de canudos, discursos e um baile de gala. Se eu faltar, ela nunca me perdoará”. O empresário não se conformava: “Olha! A gente não sustenta essa merda para que vocês deixem o trabalho pra ir a festas! Alguns membros de minha diretoria já estão começando a questionar nosso envolvimento com vocês e as despesas que estão sempre aumentando”.
Perceberam então que eu tinha acordado e o coronel mandou que me levassem de volta pra cá.

Na sala de interrogatórios, a discussão continuava. O empresário não se conformava.
— Além disso, ainda é cedo. Essas cerimônias não são sempre à noite?
O coronel continuava a argumentar.
— Sim, mas eu tenho que passar no cabeleireiro para apanhar minha mulher, ir pra casa, tomar banho para limpar toda esta sujeira, fazer a barba, me vestir. Olha, doutor, prometo que amanhã começo a sessão bem cedo, e até o fim da tarde arranco tudo daquele filho da puta. Só sai daqui, morto!
O empresário já estava se acalmando. Durante o interrogatório, era visível que estava sob o efeito da adrenalina provocada pela visão das torturas e pelos gritos do prisioneiro. Nunca perdia essas sessões. Isso o deixava visivelmente mais excitado do que uma transa. Mas agora, sua fisionomia demonstrava que a sensação já estava se dissipando, e pôde se deixar convencer. Seus olhos ainda guardavam certo brilho pela promessa de um espetáculo talvez ainda mais excitante no dia seguinte. 
Resolveu acabar logo com aquilo.
— Está bem. Vou embora. Até amanhã. Amanhã venho bem cedo, viu?
O coronel suspirou aliviado.
— Até amanhã, doutor. Amanhã será outro dia.

Na cela, Vanderlei comentou.
— Pode ser que desistiram e concluíram que eu não tenho mais informações pra dar.  O coronel me pareceu propenso a desistir. Vamos ver amanhã. Quem sabe me soltem.
Luis finalmente deixou o colega descansar.
— Ta bom. Vai, dorme. Amanhã será outro dia.
Ainda puderam ouvir gritos e gemidos vindos do outro lado da parede. Já estavam acostumados.
Vanderlei, quase dormindo, conseguiu balbuciar.
— Sim. Amanhã será outro dia.

A cortina fechou. Quando voltou a abrir, palmas soaram na platéia. Os atores agradeceram, as palmas foram esvaecendo até que pararam. O público se dispersou devagar. Alguns haviam esperado um entretenimento agradável, uma comédia romântica. Outros, mistério e suspense.  Mas os rostos não aparentavam terem sido atendidos em suas expectativas. Um senhor idoso, postura ereta, com aparência de militar reformado, comentou para seu companheiro mais jovem: “Isso é coisa de comunista. Nunca houve nada disso”. Havia expressões sombrias, olhares perdidos e testas franzidas. Não pareciam ter seus espíritos elevados artisticamente, nem suas mentes enriquecidas culturalmente. Os mais jovens não se sentiam identificados com os personagens. Pareciam duvidar que algo assim pudesse ter acontecido há poucas décadas no país. Alguns dos mais velhos tentavam não pensar no passado tenebroso. Todos pareciam perturbados. Porém sabiam que algumas boas horas de sono faria com que as lembranças do que viram no palco esmorecessem. Diziam a si mesmo: “Amanhã será outro dia”.
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Nas palavras de Moisés Spiguel: Sou engenheiro civil. Fui diretor de multinacionais.  Ao me aposentar passei a participar de diversas atividades. Fui colunista durante dois anos de um portal que já fechou e montei um grupo teatral ‘Atualidade’ no qual escrevo o texto, dirijo e também atuo. Uma das peças apresentadas, ‘Noite Feliz’, foi gravada e está no YouTube

Passei a apresentar uma série de tiras de HQ no Facebook que retrata uma família de corujas.

Em 24 de julho do presente ano lancei na Biblioteca Mário de Andrade em São Paulo meu livro ‘Nosso homem da CIA’, à venda em diversas livrarias, contendo trinta contos na linha do humor. Atualmente comecei a escrever um novo livro.

~Maya
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2 comentários:

  1. Este comentário foi removido pelo autor.

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  2. Obrigado pela apreciação e pela publicação do meu conto, cara Maya. Já que citou meu livro "Nosso homem da CIA" posto o link para acessar uma lista de livrarias que vendem o livro, a quem possa interessar: https://bit.ly/33zGoJ6

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