Embora tenha me contado que já publicou um livro com contos de humor, o texto enviado é inédito, exclusivo para os leitores do Bibliofilia, e, embora não seja de humor nem explore um tema que inspire graça, é possível perceber seu sarcasmo e inclinação para a comédia.
Fiquem agora com o conto inédito de Moisés Spiguel!
AMANHÃ
SERÁ OUTRO DIA.
Desta
vez, quando voltou, Vanderlei não parecia disposto para conversa. Mas Luis
insistia. Trancados naquele cubículo minúsculo e úmido, o silêncio era pesado e
opressor.
—
Como é que foi hoje? Está muito machucado? Você está bem? Você falou alguma
coisa?
Luis
parecia mais interessado em distrair do que interpelar.
Vanderlei
suspirou. Limpou com a manga o sangue que escorria da boca.
—
Estou bem. Não estou com vontade de conversar. Não falei quase nada lá.
Luis
pareceu surpreso.
—
Puta que o pariu! Como não falou quase nada?! Quer dizer que alguma coisa você
falou! Não me diga que entregou alguém!
Vanderlei
permaneceu em silêncio por algum tempo. Depois, não se conteve.
—
Pra você é fácil, não é? Não te levam pra lá todo dia como levam a mim!
Luis
disparou.
—
Eles sabem que nunca peguei em armas como você, porra! Sempre fui um simples
simpatizante. Já investigaram e sabem que eu nunca tive contato com grupos
armados. Me mantém aqui, não sei por que.
Vanderlei
continuava abalado, mas ainda se dispôs a responder.
—
É. Lembro quando você foi levado para interrogatório. Foi uma única vez. E não
me pareceu nada mal quando voltou.
Luis
aparentou estar ofendido
—
O que você está insinuando?
Vanderlei
não estava disposto a discutir.
—
Nada. Só comentei. Mas porque você se interessa tanto se entreguei, ou não,
alguém?
Quase
sem forças, silenciou e fechou os olhos. Luis pensou que tivesse adormecido.
Mas Vanderlei continuou.
—
Usei o truque de sempre. Só dei nomes dos que já foram mortos pela repressão, e
de outros já conhecidos pela polícia, e que sei que estão foragidos. Mas parece
que já manjaram a coisa. Pararam por hoje.
—
Pararam por quê? Ainda é cedo. Me parece que é pouco mais do meio-dia —
estranhou Luis.
O
olhar de Vanderlei ao seu companheiro de cela demonstrava quão pouco confiava
nele. Mas era visível que em seu estado físico e mental, só queria ser deixado
em paz para poder talvez dormir um pouco. A única maneira era responder as
perguntas o mais rápido possível.
—
Houve certo atrito entre o coronel e o dono da empreiteira que estava
assistindo. Eu tinha desmaiado, mas logo acordei com o barulho das vozes, sem
que percebessem. Estavam discutindo. Escutei o empresário dizendo: “Não pode
interromper agora! Mais um pouco e ele despejaria tudo!”. O coronel tentava
justificar: “Não posso deixar de ir à formatura da minha filha. Haverá entrega
de canudos, discursos e um baile de gala. Se eu faltar, ela nunca me perdoará”.
O empresário não se conformava: “Olha! A gente não sustenta essa merda para que
vocês deixem o trabalho pra ir a festas! Alguns membros de minha diretoria já
estão começando a questionar nosso envolvimento com vocês e as despesas que
estão sempre aumentando”.
Perceberam
então que eu tinha acordado e o coronel mandou que me levassem de volta pra cá.
Na
sala de interrogatórios, a discussão continuava. O empresário não se
conformava.
—
Além disso, ainda é cedo. Essas cerimônias não são sempre à noite?
O
coronel continuava a argumentar.
—
Sim, mas eu tenho que passar no cabeleireiro para apanhar minha mulher, ir pra
casa, tomar banho para limpar toda esta sujeira, fazer a barba, me vestir.
Olha, doutor, prometo que amanhã começo a sessão bem cedo, e até o fim da tarde
arranco tudo daquele filho da puta. Só sai daqui, morto!
O
empresário já estava se acalmando. Durante o interrogatório, era visível que
estava sob o efeito da adrenalina provocada pela visão das torturas e pelos
gritos do prisioneiro. Nunca perdia essas sessões. Isso o deixava visivelmente
mais excitado do que uma transa. Mas agora, sua fisionomia demonstrava que a
sensação já estava se dissipando, e pôde se deixar convencer. Seus olhos ainda
guardavam certo brilho pela promessa de um espetáculo talvez ainda mais
excitante no dia seguinte.
Resolveu
acabar logo com aquilo.
—
Está bem. Vou embora. Até amanhã. Amanhã venho bem cedo, viu?
O
coronel suspirou aliviado.
—
Até amanhã, doutor. Amanhã será outro dia.
Na
cela, Vanderlei comentou.
—
Pode ser que desistiram e concluíram que eu não tenho mais informações pra
dar. O coronel me pareceu propenso a
desistir. Vamos ver amanhã. Quem sabe me soltem.
Luis
finalmente deixou o colega descansar.
—
Ta bom. Vai, dorme. Amanhã será outro dia.
Ainda
puderam ouvir gritos e gemidos vindos do outro lado da parede. Já estavam
acostumados.
Vanderlei,
quase dormindo, conseguiu balbuciar.
—
Sim. Amanhã será outro dia.
A
cortina fechou. Quando voltou a abrir, palmas soaram na platéia. Os atores
agradeceram, as palmas foram esvaecendo até que pararam. O público se dispersou
devagar. Alguns haviam esperado um entretenimento agradável, uma comédia
romântica. Outros, mistério e suspense.
Mas os rostos não aparentavam terem sido atendidos em suas expectativas.
Um senhor idoso, postura ereta, com aparência de militar reformado, comentou
para seu companheiro mais jovem: “Isso é coisa de comunista. Nunca houve nada
disso”. Havia expressões sombrias, olhares perdidos e testas franzidas. Não
pareciam ter seus espíritos elevados artisticamente, nem suas mentes enriquecidas culturalmente. Os mais jovens
não se sentiam identificados com os personagens. Pareciam duvidar que algo
assim pudesse ter acontecido há poucas décadas no país. Alguns dos mais velhos
tentavam não pensar no passado tenebroso. Todos pareciam perturbados. Porém
sabiam que algumas boas horas de sono faria com que as lembranças do que viram
no palco esmorecessem. Diziam a si mesmo: “Amanhã será outro dia”.
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Nas palavras de Moisés Spiguel: Sou
engenheiro civil. Fui diretor de multinacionais. Ao me aposentar passei a participar de
diversas atividades. Fui colunista durante dois anos de um portal que já fechou
e montei um grupo teatral ‘Atualidade’ no qual escrevo o texto, dirijo e também
atuo. Uma das peças apresentadas, ‘Noite Feliz’, foi gravada e está no YouTube
Passei
a apresentar uma série de tiras de HQ no Facebook que retrata uma família de
corujas.
Em
24 de julho do presente ano lancei na Biblioteca Mário de Andrade em São Paulo meu
livro ‘Nosso homem da CIA’, à venda em diversas livrarias, contendo trinta
contos na linha do humor. Atualmente comecei a escrever um novo livro.
~Maya
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ResponderExcluirObrigado pela apreciação e pela publicação do meu conto, cara Maya. Já que citou meu livro "Nosso homem da CIA" posto o link para acessar uma lista de livrarias que vendem o livro, a quem possa interessar: https://bit.ly/33zGoJ6