quarta-feira, 2 de outubro de 2019

A cor dessa cidade

Vivo em uma bolha onde cada vez mais poetas tiram seu trabalho da gaveta e jogam ao mundo. Vejo diariamente livros de poesia sendo publicados em pequenas e corajosas editoras, algumas sobrevivendo de atividades paralelas, outras da verba do próprio autor, que cobre os custos da publicação de seu livro. Dentro dessa bolha onde eu vivo, o consumo da poesia vem aumentando e enchendo os poetas de esperança, mas sabemos que do lado de fora a coisa é um pouco menos conto de fadas.

Tudo se resume a uma frase que ouvi de uma editora ao tentar publicar meu primeiro livro de poesias, aos 14 anos: "poesia não vende". Não parei de escrever poemas e hoje tenho dois livros do gênero publicados, mas me chamou a atenção para uma coisa: poesia até vende, mas muitas vezes o que vende na livraria é o autor com nome famoso, que a pessoa compra pra fazer bonito e não necessariamente vai ler. Na reportagem que fiz sobre esse panorama da poesia brasileira contemporânea, em que entrevistei alguns dos editores que mais investem em poesia, a informação que surgiu é que fora do grande circuito comercial, das redes de livrarias e afins, o que vende é poesia de gente que construiu um bom público por meio de participação de eventos, premiações, saraus e afins.

Qualquer das alternativas exclui poetas fora do eixo central do país - onde a maioria dos eventos acontece - e que não possuem condições financeiras para se fazer presente. A soma dos dois fatores - nomes consagrados e gente que consegue se fazer presente pra ser visto - faz com que um número gigantesco de ótimos poetas amarguem uma vida artística de invisibilidade.

Na contramão de todo esse pessimismo, um jovem poeta, que atua como dentista para sobreviver, provindo do sertão nordestino, filho de uma cidade com 17 mil habitantes e que produziu um livro em homenagem à sua cidade de forma totalmente independente foi à São Paulo, em 2018, entrar pra história. Maílson Furtado foi o primeiro autor independente da história a ganhar o Jabuti de Livro do Ano. Não só nisso fez história, mas também não é nada comum que um poeta leve esse prêmio para casa.



Do interior do Nordeste, diretamente do sertão, para o mundo. Maílson, independente de qualquer análise (que vai acontecer abaixo) já se tornou um nome a ser lembrado, pela independência de sua produção, pelo gênero literário e, principalmente, por estar fora dos dois circuitos que mais garantem vendas e premiações.

Quanto ao livro em si, porque isso era pra ser uma resenha e não uma reportagem (se fosse uma reportagem, eu estaria com um timing de quase um ano de atraso), a primeira coisa que me chamou a atenção foi a cor.

Nunca estive no sertão nordestino. Aliás, nunca estive no Nordeste, mas fora a imagem turística das belas praias e todo o estereótipo tanto negativo quanto positivo que chega aqui no sul, sempre que penso em uma cor para o interior da região, é justamente o marrom terra. O livro de Maílson e todo dessa cor, das ilustrações às palavras. É como ter, de algum jeito, um pouco do sertão nas mãos. E não deixa de ser, já que a poesia longa apresentava no livro tem exatamente esse objetivo.

Ler a terra do sertão. Temos em mãos um livro recheado de metáforas, jogos de palavras, brincadeiras fonéticas gramaticais. Uma terra composta de figuras de linguagem. E de estreia, o começo do livro se abre em musicalidade.

Não há regras na poética de Maílson. Cada pedaço de sua poesia é como manda sua vontade, sua imaginação e a terra de Varjota, a cidade homenageada por Maílson que, ironicamente, nem livraria tem. Logo em seguida, como um organismo vivo feito de pedras e terras, as ruas da cidade são convertidas em veias por onde o fluxo da vida humana passa.

Na página 10, o poeta mistura o vivo e o não-vivo como uma coisa só. Tudo o que é vivo passa, em uma tarde da rotina comum da cidade. Menos as casas. As casas permanecem paradas mesmo que o poeta as dê vida enquanto cochilam, despertam ou dormem. E dormem em pedaços, onde as luzes se apagam, a casa adormece. Maílson humaniza a casa, como se o apagar do poste, na chegada do amanhecer, fosse seu despertador, o sinal que a casa recebe da cidade para acordar.

As ruas se tornam um elemento tão importantes na poética de "À cidade" que nos damos conta que as casas - organismos não-vivos - não pertencem aos seus moradores, mas às ruas. Os moradores se deslocam, saem, voltam, mudam de endereço, enquanto as casas permanecem no mesmo lugares, imóveis, onde devem estar. Se demolidas para saírem da rua, deixam de ser casas. A casa pertence à rua, que pertence à cidade, onde o homem, esse sim organismo vivo, habita.

Nessa mesma linha temática explorada no livro, de forma metafórica, o autor também humaniza objetos que integram a rotina dos moradores da cidade. A enxada trabalha, a casa adormece, o homem tem raízes. Uma salada de frutas de figuras de linguagem que tornam todos semelhantes entre si, mesmo que o homem tenha as veias, a cidade as ruas, que funcionam exatamente da mesma maneira - bombeando vida, mantendo o corpo - e a cidade - em movimento. Como o homem que riu, o rio que respinga.

Na descrição da rotina da cidade, Maílson traz toques de homenagem à tradição oral, responsável pelas lendas que norteiam produções literárias até os dias de hoje e que, certamente, tiveram importante papel na sua construção cultural como leitor e como poeta. E como tudo é vivo na poética do autor, reclama ele que o clima desrespeita os intervalos que a cidade e os homens fazem, trazendo um retrato poético do interior.

Nos dias que seguem, o sol é sempre o mesmo a garantir a rotina. É sempre o mesmo mesmo que não pareça estar lá. E chegamos no domingo, onde tudo o que é vivo também é folga, é namoro na praça, é o rio dele rindo com seu avô enquanto o rio da cidade goteja, sempre vivo. Domingo é dia de feira também, metaforizando que de segunda à sexta também há feira, mas não a mesma feira do domingo.

O rio da cidade é da mesma água que deságua no mar, que percorre oceano, que encosta nos países de outro continente, como se sua pequena cidade sertaneja estivesse naturalmente conectada com o mundo.

Mais tarde, em sua narrativa composta de figuras de linguagem, Maílson mistura a origem do rio com sua própria genealogia. Tudo está conectado. Como o trem no trilho, que, na obra, também ganha vida, e uma vida pulsante de quem carrega homem e progresso. Já as pontes, Maílson as chama de suturas, como os pontos que unem a pele rasgada, as pontes unem o rasgo da terra.

Enquanto segue sua descrição da cidade viva, o poeta homenageia os famosos pontos de referência, que, mesmo em cidades um tanto maiores do que a sua, por vezes se tornam mais importantes aos que transitam pela cidade do que o próprio nome da rua. Quem jamais ouviu "fica na rua do mercadinho" ou "segue pela rua da farmácia"?

Já se encaminhando para o encerramento da obra, Maílson lembra de tantos que saem de suas pequenas cidades do sertão para tentar a vida nas cidades grandes, mudanças extremas que levam esses organismos vivos para longe da cidade, mas a cidade e sua vida pulsante não abandona por completo esses organismos vivos que partiram, tal qual o rio, que se desloca mas é sempre da cidade, tal qual o trem que se desloca mas sempre volta.

O poeta finaliza sua ode ao sertão e à cidade de onde veio em especial colocando-se como parte dela, como um órgão no corpo cidade, como um glóbulo que passa carregando vida pelas suas veias-ruas.

Poesia é um gênero complexo, muito mais dependente do gosto pessoal do que a prosa, muito mais fácil de ser julgada por sua qualidade ou falta de. O que me encanta, na obra, é a verdade que o trabalho de Maílson carrega. Ele não homenageia a cidade em vão, ele homenageia um amor verdadeiro, como uma poesia à sua amada, como os tradicionais poemas de amor que tanto sucesso fazem.

Maílson não nos transporta à Varjota pela descrição. Termino o livro sem fazer ideia de como é a cidade, de forma imagética, mas nos transporta via metáfora. Sei que tem vida de interior em Varjota, sei que no domingo tem feira e os jovens namoram na praça, sei que que a sesta é respeitada, que as ruas são pulsantes, que o rio deságua, que o trem passa, sei que pessoas saem de lá mas suas raízes ficam. Sei que, de forma metafórica, folheei a terra do sertão nordestino enquanto conhecia a cidade. Não necessariamente a cidade onde nasceu Maílson, mas a cidade onde as tradições são preservadas e as casas amanhecem todos os dias.
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À cidade
Maílson FurtadoViana

Produção independente. Fortaleza, 2017
60 páginas
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Maílson Furtado Viana é autor das obras Sortimentos (2012), Conto a Conto (2013) e Versos Pingados (2014). Membro-fundador da Cia Teatral Criando Arte e membro-fundador do Grupo Literário Pescaria. O livro "À Cidade" venceu o Prêmio Jabuti como Livro do Ano em 2018.

~Maya

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