Todo artista, ou entusiasta de qualquer tipo de arte entende
que vivemos tempos obscuros. Os exemplos são jogados sobre nossas fuças quase
que diariamente e sempre dividem as opiniões entre os que seguem nas
trincheiras pela nossa liberdade artística e de expressão e aqueles que repetem
ad infinitum o argumento de que
artista é tudo vagabundo.
Os ataques, por óbvio, não são de hoje. Toda ascensão de
governos autoritários carrega duas vertentes centrais de limitação do acesso ao
conhecimento pelo povo: a educação e a arte. Não à toa que em qualquer regime
dessa natureza professores são vigiados, currículos escolares alterados e
artistas censurados. Exemplos pipocam pelo mundo – talvez o mais icônico seja a
queima de livros pelo regime Nazista.
Educação e cultura não são dois lados da mesma moeda – até
porque isso os faria opostos – mas duas moedas de igual valor no combate à
ignorância e na criação do pensamento crítico. Por isso os programas de
incentivo à leitura desde a infância são fundamentais (aqui cito a literatura
por ser o foco deste blog), por isso professores que vão além do “be-a-bá” são
considerados perigosos e artistas tratados como verdadeiros marginais.
O bombardeio contra a cultura já vinha se desenhando há
algum tempo, antes de mudanças concretas na estrutura do poder (mudanças de
presidente, um no meio de uma gestão e outro via eleição), quando os famosos boots começaram a espalhar mentiras
sobre a Lei Rouanet. Lembro-me com clareza que, quando surgiram em grande
volume fake News manipulando a
opinião pública contra a Lei, muitos de nós (por nós, aqui me coloco como
artista) já tínhamos entendido que não era uma situação isolada. A demonização
da Lei através da mentira e desinformação foi um passo importante para um novo
processo de isolamento e desprezo dos artistas como uma classe.
Por isso que, mesmo que nos seja assustador, os atos de
censura que testemunhamos atualmente não nos pegaram de surpresa. A ideia de
que o cidadão de bem estava pagando para sustentar vagabundo que expõe
pornografia a crianças se tornou tão comum que é usado mesmo quando a arte não
possui pornografia e quando o público da arte não é infantil.
Citando uma situação bem particular de censura que não gerou
nenhum tipo de barulho, no ano de 2017 lancei meu segundo romance, Histórias de
Minha Morte, cuja protagonista e narradora é uma mulher negra e periférica. O
livro foi aprovado em edital público de fomento à cultura e, em minha cidade, é
tradição que os livros lançados por esse edital sejam trabalhados nas escolas
para que os estudantes tenham acesso aos artistas locais, tanto pela obra
quanto pela possibilidade de presença do artista junto aos estudantes. O livro
em questão não é uma leitura leve; contém violências de várias naturezas, mas
propõe debates importantes como racismo, estupro, relacionamentos abusivos e
transtornos psiquiátricos.
Por óbvio não esperava que a obra fosse trabalhada com
crianças ou jovens de 12, 13 anos, mas adolescentes na faixa dos 15, 16 anos já
estariam aptos a trabalhar o livro. Para minha surpresa, o livro foi barrado
nas escolas. Nas públicas, a justificativa foi que o livro era muito “pesado”
para adolescentes, nas particulares o que pesou foi o medo da reação dos pais,
um patrulhamento ideológico já em andamento, mesmo que o livro – uma ficção –
discuta temas sociais que envolvem seres humanos de qualquer espectro político.
Claro que meu livro é um exemplo muito pequeno, muito local.
Talvez o leitor mais desavisado não compreenda que essa “inocente” proibição é
parte de algo muito maior, até porque alguns dos casos de maior repercussão dos
últimos tempos em temos de cerceamento da liberdade artística usam o mesmo
argumento de proteção à criança. Aliás, não só artístico, mas educacional
também.
Entre os mais icônicos testemunhados esse ano está a censura
a uma revista em quadrinhos na Bienal do Rio de Janeiro por conter uma
ilustração de um beijo entre um casal gay. Mesmo que a revista não estivesse
sendo comercializada para o público infantil, e mesmo que ilustrações com
beijos entre casais héteros jamais tenham sofrido retaliações quando
disponíveis às crianças, a proteção contra uma suposta sexualização da infância
se tornou a justificativa de muitos a um ato que não tem outro nome que não
homofobia e censura.
Foi na contramão dessa ação que um famoso youtuber realizou certamente
o ato mais caro em termos financeiros, adquirindo 14 mil exemplares de livros
de temática LGBT para distribuição gratuita no evento. Como vivemos em tempos
de extremos, o youtuber passou a receber ameaças de morte.
Nesse mesmo sentido, vítima de ação de um poder público que
se orgulha de desconhecer a arte e suas funções – e talvez por isso a despreze
tanto – a poeta Angélica Freitas teve seu livro “Um útero é do tamanho de um
punho” como alvo de um pedido de moção de repúdio na Câmara dos Deputados, em
Santa Catarina, depois de adotado no vestibular de duas universidades. Outra
autora, Natália Polesso, já havia sentido o peso da total falta de senso de
interpretação artística quando parte de um conto seu esteve presente na prova
do ENEM.
O caso de Angélica foi emblemático, porque o que tornou o
livro da poeta objeto de repúdio na moção foi a citação do útero, como se falar
de partes da anatomia fosse algo abjeto por si só, desprezível, que deva ser
escondido da sociedade e dos jovens de 17 anos. O que há de imoral ou criminoso
em se citar um órgão característico da anatomia feminina de forma poética a um
público que deve saber que este órgão existe e como funciona? Deveríamos também
amoralizar a anatomia humana nos estudos de biologia para “proteger nossas
crianças”?
Não é o foco do presente texto, mas sabemos que a proteção à
infância fica só no campo das artes. Vi, incrédula, cidadãos elogiando o
governador carioca pela ação policial que causou a morte de uma criança de 8
anos. Agatha devia ser protegida da exposição a um casal gay ou à descrição de
um útero, mas não da bala que custou sua vida?
Muitas outras questões se misturam quando o tema é censura.
Mesmo quando não existe de fato uma censura – ou provém de uma fonte sem tal
poder – o cerceamento das artes encontra respaldo onde menos se esperaria, que
é dentro da própria classe artística. Exemplos igualmente não faltam, com uma
onda de artistas conservadores dispostos a puxar o tapete do colega sabe-se lá
porquê. No período da ditadura artistas famosos se aliaram ao regime delatando
colegas e hoje, se os métodos de repressão retornarem com o mesmo formato da
época, não faltarão artistas dispostos a fazer o mesmo.
Até esse humilde blog, que hoje completa 3 meses de
existência, conta com poucas visitações em termos gerais, já recebeu sua pitada
de silenciamento. Chegou aos meus ouvidos uma crítica feita por uma pessoa da
mesma classe que defendo e divulgo nessas paragens de que o trabalho aqui
realizado possui baixa qualidade analítica e falta de ética pela ausência de um
diploma de Letras em meu Lattes. O que surpreende não é a crítica de uma baixa
qualidade analítica, opiniões são sempre muito particulares, o que me chocou de
fato foi a acusação de falta de ética por eu ousar criar um projeto de
divulgação da literatura através de exposição do trabalho alheio e resenhas de
minha autoria sob a justificativa de uma suposta falta de qualificação
acadêmica.
Não me falta. A graduação em jornalismo, cujo diploma expus
orgulhosamente nas redes sociais na ocasião de minha formatura, me autoriza
formalmente a me tornar uma resenhista, a resenha integra o escopo de minha
formação acadêmica, a minha vida inteira dedicada à literatura me confere a
ética de falar sobre aquilo que mais entendo. O momento obscuro que vivemos de
um retorno nada sutil da censura contra as artes me impele a criar mais um
espaço de resistência, abrindo as portas aos autores e editoras que estão todos
com a corda no pescoço. Embora a crítica não cite o blog ou meu nome, cita em
aspas palavras minhas e meu recente ingresso no curso de Letras, e chegou a mim
por várias fontes que reconheceram, nas palavras do emissor, o óbvio alvo da
crítica.
Um caso isolado, isoladíssimo diante do apoio inconteste que
o blog recebe de autores, editoras e leitores. O mesmo não acontece com a atriz
que já virou um ícone da nossa cultura, Fernanda Montenegro. Prestes a
completar 90 anos, a atriz foi capa da revista Quatro Cinco Um em ocasião do
lançamento de sua biografia pela Companhia das Letras (inclusive quero), onde,
entre outras fotos de um ensaio fotográfico cheio de referências artísticas,
Fernanda aparece “amarrada” sobre um monte de livros em claríssima alusão às
fogueiras medievais.
Mariana Maltoni - Revista Fórum |
Fernanda viveu na pele a repressão da Ditadura Militar, não
somente pelas censuras aos textos das peças que encenava, que variavam de local
para local obrigando elenco a readaptar as peças frequentemente conforme as
vontades e interpretações dos censores, mas também as violências e o medo. A
própria atriz relatou, para a revista Pragmatismo Político em 2014, que em uma
determinada situação, o elenco inteiro de uma peça foi espancado dentro do
teatro por um grupo intitulado “Comando de Caça aos Comunistas”. Em outra, ela
foi diretamente ameaçada de morte, quando a informaram que levaria um tiro na
testa se subisse ao palco. Apesar do medo, ela subiu. Em outro dia, neste mesmo
período, atiraram contra a janela do quarto onde ela e o marido dormiam
hospedados na casa de um colega. A bala, por sorte, se alojou no teto e ninguém
saiu ferido.
Mais do que ninguém, Fernanda Montenegro conhece bem os
meandres da censura. E foi justamente por não ter medo dela, com a mesma
coragem que sobreviveu à Ditadura, que Fernanda se manifestou contra os atos
recentes. Claro que a polêmica estava plantada, e um de seus mais agressivos
críticos foi um colega. Diretor de teatro, o colega em questão chamou Fernanda
de “sórdida” e atribuiu a uma revista especializada em literatura o rótulo de “revista
de esquerda”. Seria óbvio pensar que uma revista de literatura não apoiaria
nenhuma forma de censura, mas vemos que dentro da própria classe artística a
ideia do cerceamento, do silenciamento e da retirada de direitos sobre o fazer
arte estão presentes, hora de forma sutil, hora de forma escancarada, e
escandalosa.
As palavras do Diretor de teatro, galgado a alto cargo no
governo por seu posicionamento político declarado abertamente, ganharam eco e
hoje vemos uma senhora de quase 90 anos e um irretocável histórico de
contribuição artística pelo país ser covardemente atacada por fazer uso daquilo
que é nosso por direito: a voz.
Não existem fórmulas mágicas. A arte sobreviveu a todas as
formas de repressão porque é, antes de tudo, resistência. Agora não será
diferente.
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Maya Falks é escritora, poeta, publicitária, jornalista e acadêmica de Letras. Idealizadora e resenhista do projeto Bibliofilia Cotidiana.
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Um "resumo da ópera" - triste farsa da tragédia concebida como fato histórico. Marx tinha razão. E vc também quando diz "
ResponderExcluirNão existem fórmulas mágicas. A arte sobreviveu a todas as formas de repressão porque é, antes de tudo, resistência. Agora não será diferente."
Belo comentário!
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