terça-feira, 24 de setembro de 2019

Entre trevas – arte e censura lado a lado outra vez


Todo artista, ou entusiasta de qualquer tipo de arte entende que vivemos tempos obscuros. Os exemplos são jogados sobre nossas fuças quase que diariamente e sempre dividem as opiniões entre os que seguem nas trincheiras pela nossa liberdade artística e de expressão e aqueles que repetem ad infinitum o argumento de que artista é tudo vagabundo.

Os ataques, por óbvio, não são de hoje. Toda ascensão de governos autoritários carrega duas vertentes centrais de limitação do acesso ao conhecimento pelo povo: a educação e a arte. Não à toa que em qualquer regime dessa natureza professores são vigiados, currículos escolares alterados e artistas censurados. Exemplos pipocam pelo mundo – talvez o mais icônico seja a queima de livros pelo regime Nazista.

Educação e cultura não são dois lados da mesma moeda – até porque isso os faria opostos – mas duas moedas de igual valor no combate à ignorância e na criação do pensamento crítico. Por isso os programas de incentivo à leitura desde a infância são fundamentais (aqui cito a literatura por ser o foco deste blog), por isso professores que vão além do “be-a-bá” são considerados perigosos e artistas tratados como verdadeiros marginais.

O bombardeio contra a cultura já vinha se desenhando há algum tempo, antes de mudanças concretas na estrutura do poder (mudanças de presidente, um no meio de uma gestão e outro via eleição), quando os famosos boots começaram a espalhar mentiras sobre a Lei Rouanet. Lembro-me com clareza que, quando surgiram em grande volume fake News manipulando a opinião pública contra a Lei, muitos de nós (por nós, aqui me coloco como artista) já tínhamos entendido que não era uma situação isolada. A demonização da Lei através da mentira e desinformação foi um passo importante para um novo processo de isolamento e desprezo dos artistas como uma classe.

Por isso que, mesmo que nos seja assustador, os atos de censura que testemunhamos atualmente não nos pegaram de surpresa. A ideia de que o cidadão de bem estava pagando para sustentar vagabundo que expõe pornografia a crianças se tornou tão comum que é usado mesmo quando a arte não possui pornografia e quando o público da arte não é infantil.

Citando uma situação bem particular de censura que não gerou nenhum tipo de barulho, no ano de 2017 lancei meu segundo romance, Histórias de Minha Morte, cuja protagonista e narradora é uma mulher negra e periférica. O livro foi aprovado em edital público de fomento à cultura e, em minha cidade, é tradição que os livros lançados por esse edital sejam trabalhados nas escolas para que os estudantes tenham acesso aos artistas locais, tanto pela obra quanto pela possibilidade de presença do artista junto aos estudantes. O livro em questão não é uma leitura leve; contém violências de várias naturezas, mas propõe debates importantes como racismo, estupro, relacionamentos abusivos e transtornos psiquiátricos.



Por óbvio não esperava que a obra fosse trabalhada com crianças ou jovens de 12, 13 anos, mas adolescentes na faixa dos 15, 16 anos já estariam aptos a trabalhar o livro. Para minha surpresa, o livro foi barrado nas escolas. Nas públicas, a justificativa foi que o livro era muito “pesado” para adolescentes, nas particulares o que pesou foi o medo da reação dos pais, um patrulhamento ideológico já em andamento, mesmo que o livro – uma ficção – discuta temas sociais que envolvem seres humanos de qualquer espectro político.

Claro que meu livro é um exemplo muito pequeno, muito local. Talvez o leitor mais desavisado não compreenda que essa “inocente” proibição é parte de algo muito maior, até porque alguns dos casos de maior repercussão dos últimos tempos em temos de cerceamento da liberdade artística usam o mesmo argumento de proteção à criança. Aliás, não só artístico, mas educacional também.
Entre os mais icônicos testemunhados esse ano está a censura a uma revista em quadrinhos na Bienal do Rio de Janeiro por conter uma ilustração de um beijo entre um casal gay. Mesmo que a revista não estivesse sendo comercializada para o público infantil, e mesmo que ilustrações com beijos entre casais héteros jamais tenham sofrido retaliações quando disponíveis às crianças, a proteção contra uma suposta sexualização da infância se tornou a justificativa de muitos a um ato que não tem outro nome que não homofobia e censura.

Foi na contramão dessa ação que um famoso youtuber realizou certamente o ato mais caro em termos financeiros, adquirindo 14 mil exemplares de livros de temática LGBT para distribuição gratuita no evento. Como vivemos em tempos de extremos, o youtuber passou a receber ameaças de morte.
Nesse mesmo sentido, vítima de ação de um poder público que se orgulha de desconhecer a arte e suas funções – e talvez por isso a despreze tanto – a poeta Angélica Freitas teve seu livro “Um útero é do tamanho de um punho” como alvo de um pedido de moção de repúdio na Câmara dos Deputados, em Santa Catarina, depois de adotado no vestibular de duas universidades. Outra autora, Natália Polesso, já havia sentido o peso da total falta de senso de interpretação artística quando parte de um conto seu esteve presente na prova do ENEM.

O caso de Angélica foi emblemático, porque o que tornou o livro da poeta objeto de repúdio na moção foi a citação do útero, como se falar de partes da anatomia fosse algo abjeto por si só, desprezível, que deva ser escondido da sociedade e dos jovens de 17 anos. O que há de imoral ou criminoso em se citar um órgão característico da anatomia feminina de forma poética a um público que deve saber que este órgão existe e como funciona? Deveríamos também amoralizar a anatomia humana nos estudos de biologia para “proteger nossas crianças”?


Não é o foco do presente texto, mas sabemos que a proteção à infância fica só no campo das artes. Vi, incrédula, cidadãos elogiando o governador carioca pela ação policial que causou a morte de uma criança de 8 anos. Agatha devia ser protegida da exposição a um casal gay ou à descrição de um útero, mas não da bala que custou sua vida?

Muitas outras questões se misturam quando o tema é censura. Mesmo quando não existe de fato uma censura – ou provém de uma fonte sem tal poder – o cerceamento das artes encontra respaldo onde menos se esperaria, que é dentro da própria classe artística. Exemplos igualmente não faltam, com uma onda de artistas conservadores dispostos a puxar o tapete do colega sabe-se lá porquê. No período da ditadura artistas famosos se aliaram ao regime delatando colegas e hoje, se os métodos de repressão retornarem com o mesmo formato da época, não faltarão artistas dispostos a fazer o mesmo.

Até esse humilde blog, que hoje completa 3 meses de existência, conta com poucas visitações em termos gerais, já recebeu sua pitada de silenciamento. Chegou aos meus ouvidos uma crítica feita por uma pessoa da mesma classe que defendo e divulgo nessas paragens de que o trabalho aqui realizado possui baixa qualidade analítica e falta de ética pela ausência de um diploma de Letras em meu Lattes. O que surpreende não é a crítica de uma baixa qualidade analítica, opiniões são sempre muito particulares, o que me chocou de fato foi a acusação de falta de ética por eu ousar criar um projeto de divulgação da literatura através de exposição do trabalho alheio e resenhas de minha autoria sob a justificativa de uma suposta falta de qualificação acadêmica.

Não me falta. A graduação em jornalismo, cujo diploma expus orgulhosamente nas redes sociais na ocasião de minha formatura, me autoriza formalmente a me tornar uma resenhista, a resenha integra o escopo de minha formação acadêmica, a minha vida inteira dedicada à literatura me confere a ética de falar sobre aquilo que mais entendo. O momento obscuro que vivemos de um retorno nada sutil da censura contra as artes me impele a criar mais um espaço de resistência, abrindo as portas aos autores e editoras que estão todos com a corda no pescoço. Embora a crítica não cite o blog ou meu nome, cita em aspas palavras minhas e meu recente ingresso no curso de Letras, e chegou a mim por várias fontes que reconheceram, nas palavras do emissor, o óbvio alvo da crítica.

Um caso isolado, isoladíssimo diante do apoio inconteste que o blog recebe de autores, editoras e leitores. O mesmo não acontece com a atriz que já virou um ícone da nossa cultura, Fernanda Montenegro. Prestes a completar 90 anos, a atriz foi capa da revista Quatro Cinco Um em ocasião do lançamento de sua biografia pela Companhia das Letras (inclusive quero), onde, entre outras fotos de um ensaio fotográfico cheio de referências artísticas, Fernanda aparece “amarrada” sobre um monte de livros em claríssima alusão às fogueiras medievais.

Mariana Maltoni - Revista Fórum

Fernanda viveu na pele a repressão da Ditadura Militar, não somente pelas censuras aos textos das peças que encenava, que variavam de local para local obrigando elenco a readaptar as peças frequentemente conforme as vontades e interpretações dos censores, mas também as violências e o medo. A própria atriz relatou, para a revista Pragmatismo Político em 2014, que em uma determinada situação, o elenco inteiro de uma peça foi espancado dentro do teatro por um grupo intitulado “Comando de Caça aos Comunistas”. Em outra, ela foi diretamente ameaçada de morte, quando a informaram que levaria um tiro na testa se subisse ao palco. Apesar do medo, ela subiu. Em outro dia, neste mesmo período, atiraram contra a janela do quarto onde ela e o marido dormiam hospedados na casa de um colega. A bala, por sorte, se alojou no teto e ninguém saiu ferido.

Mais do que ninguém, Fernanda Montenegro conhece bem os meandres da censura. E foi justamente por não ter medo dela, com a mesma coragem que sobreviveu à Ditadura, que Fernanda se manifestou contra os atos recentes. Claro que a polêmica estava plantada, e um de seus mais agressivos críticos foi um colega. Diretor de teatro, o colega em questão chamou Fernanda de “sórdida” e atribuiu a uma revista especializada em literatura o rótulo de “revista de esquerda”. Seria óbvio pensar que uma revista de literatura não apoiaria nenhuma forma de censura, mas vemos que dentro da própria classe artística a ideia do cerceamento, do silenciamento e da retirada de direitos sobre o fazer arte estão presentes, hora de forma sutil, hora de forma escancarada, e escandalosa.

As palavras do Diretor de teatro, galgado a alto cargo no governo por seu posicionamento político declarado abertamente, ganharam eco e hoje vemos uma senhora de quase 90 anos e um irretocável histórico de contribuição artística pelo país ser covardemente atacada por fazer uso daquilo que é nosso por direito: a voz.

Não existem fórmulas mágicas. A arte sobreviveu a todas as formas de repressão porque é, antes de tudo, resistência. Agora não será diferente.

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Maya Falks é escritora, poeta, publicitária, jornalista e acadêmica de Letras. Idealizadora e resenhista do projeto Bibliofilia Cotidiana. 





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2 comentários:

  1. Um "resumo da ópera" - triste farsa da tragédia concebida como fato histórico. Marx tinha razão. E vc também quando diz "
    Não existem fórmulas mágicas. A arte sobreviveu a todas as formas de repressão porque é, antes de tudo, resistência. Agora não será diferente."

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