quarta-feira, 18 de setembro de 2019

Fora de ordem

Vai parecer estranho, mas esse parágrafo não é o começo da resenha. Planejei cuidadosamente como seria o começo da resenha, e não, não era assim, mas achei pertinente começar com uma observação engraçada sobre um comportamento comum que também foi o meu: "livros grossos assustam, eu prefiro os finos". Ao contrário do que você vai pensar, livros grossos não me assustam (inclusive minha biblioteca tem muito mais grossos do que finos e o parágrafo está desandando), a questão é que, depois de duas leituras rápidas de livros de poesia, decidi que a próxima resenha seria de um romance, para variar. Valorizando não só autores que me disponibilizam suas obras, mas editoras também, decidi que o romance seria um dos três livros gentilmente cedidos pela Caiaponte Edições.

Ok, ok, erro de cálculo, esse parágrafo também não é o começo da resenha. Na hora de escolher o livro, sabendo que tinha uns projetos pessoais pra tocar, usei como critério o tamanho. Sim, escolhi o livro mais fino entre os enviados pela editora para fazer minha leitura minuciosa em um tempo mais curto para manter o blog alimentado enquanto tocava outros projetos. Pensa numa pessoa que aprendeu na marra que livro menor não significa leitura mais curta. E agora sim, vou começar a resenha.

Lembro da primeira vez que assisti "Amnésia", filme do ano 2000 dirigido por Cristopher Nolan, ou de praticamente todas as vezes que assisti qualquer coisa dirigida por David Lynch incluindo a série Twin Peaks (uma de minhas favoritas, por sinal). Deste último, tirando o belíssimo Homem Elefante, não teve um único filme que não tenha me causado o efeito de vertigem.

Qualquer dessas obras citadas tem como base de sua criação o estranhamento. A gente não entende exatamente o que está acontecendo; temos na mão um ou outro elemento mais concreto que nos permite no mínimo ter curiosidade de saber o que vai acontecer depois, pelo menos na esperança de uma explicação que junte as pecinhas.

Só que o filme te conduz pelas imagens. No livro, as imagens são aquelas que o leitor constrói com base no que foi descrito ou relatado pelo autor. E as imagens do leitor acabam sendo totalmente livres. O livro "Lugares Ogros", de Telma Scherer causou exatamente esse efeito em mim: da vertigem, da confusão e do receio, em cada capítulo, de ter criado uma imagem diferente da necessária para a compreensão do livro. Isso poderia parecer uma crítica negativa ao trabalho de Telma não fosse um detalhe: foi tudo de propósito.



O livro tem 106 páginas. No meu caso as 106 páginas estão repletas de anotações, perguntas, conclusões e post-its. Nunca tinha usado tanta flag num único livro. Posso provar.


A primeira situação que me fisgou foi quando, no prólogo, o narrador (ou narradora, já chegamos nesse ponto) cita uma mulher de vermelho. Ao longo do livro, a referência da mulher de vermelho aparece muitas vezes, algumas de forma mais evidentes atribuindo a simbologia à própria narradora-protagonista-ou-talvez-nem-tanto ou à mulher tagarela atrapalhando as orações no Centro Espírita, que me parece ser um lugar de extrema importância para Roberto, um dos narradores-protagonistas-ou-talvez-nem-tanto.

O causo é que a mulher de vermelho tem uma simbologia muito forte na cultura pop, principalmente depois do sucesso de bilheteria que seria inspiração para as mais insanas teorias da conspiração, Matrix. No filme, enquanto Morpheus explica a Neo sobre a finalidade e os perigos da Matrix, Neo se distrai com uma mulher de vestido vermelho que se destaca entre tantas outras pessoas de roupas escuras. Nessa cena, não fosse o fato de a mulher de vermelho ser uma simulação, Neo teria sido morto pelo Agente Smith. No contexto do uso simbólico da mulher de vermelho, essa personagem representa uma distração em um mundo padronizado em tons de cinza (e essa não é uma referência a mais um filme), o que significa que a autora já nos dá, em um dos primeiros parágrafos do livro, a simbologia da distração.

Assim como na metáfora apresentada em Matrix, a mulher de vermelho - mesmo que não a mesma mulher, ou mesmo que não sempre com o mesmo tipo de vestimenta - acaba aparecendo em momentos-chave do livro, seja atrapalhando os fiéis no Centro, seja atraindo a atenção de outro narrador-protagonista-ou-talvez-nem-tanto.

Temos como elementos concretos uma mulher, estudante universitária, que acaba de ser despejada de seu apartamento e sai dele apenas com uma mochila pesada. Ela está grávida embora esse fato não seja efetivamente explorado de forma contundente. Temos também Jorge e Roberto, dois homens que não apenas são parte da vida da narradora como vez ou outra são eles mesmos narradores. Jorge, por sinal, é o pai da criança. Roberto é espírita. Claudina está internada no mesmo hospital psiquiátrico onde um coletivo de teatro ocupa um espaço. Cecília, a avó, tem Alzheimer. E Maria. Passei o livro inteiro peguntando se Maria era a protagonista inicial, a mulher da mochila, da gravidez, indignada com a greve na faculdade, que cortou a mão lavando um copo, que pegou o ônibus para Vila Nova e que dialoga com alguém que, ao longo do livro, questionei se seria outro personagem, um diário ou o próprio leitor.

Gostei do tom filosófico já de largada do livro: "Lá longe lembrarei apenas das coisas e não dos nomes. Terei pena dos nomes porque eles são vazios". Discordo um pouco da frase porque nomes são a ferramenta inicial da atribuição de significados às coisas, mas a composição da frase me encantou. O que eu concordo é que eu esquecerei mesmo todos os nomes (já esqueço) e isso não diminui a importância dos donos desses nomes para mim. Por sinal, do prólogo saiu uma anotação minha dizendo "prosa poética em estado puro". Também até ali entendi que ela sabia que o parceiro não era o pai da criança. Bom, as coisas não correram como eu previa.

Gosto de colocações abstratas, como quando a narradora reclama que sofre opressão do papel quando recebe um folheto na rua e reflete que "querer coisas pesa". A sensação que deu é que seu despejo não era exatamente literal (era), mas simbólico, que ela sentia a necessidade de fugir de alguma coisa. Um relacionamento abusivo talvez? Mais tarde sabemos que Jorge queria sair com uma determinada mulher para ser visto na faculdade com uma "atriz gostosa". A protagonista (Maria, talvez?) fala de música, fala de teatro, e lá pelas tantas é chamada de escritora por Jorge, o que nos leva à ideia de que sejam pessoas diferentes. O tempo todo.

Sim, a confusão é proposital. Quando entramos com a narradora (uma delas) no ônibus, ela nos descreve o que vê. Em seguida somos jogados a um capítulo, nomeado "Sem número" onde o narrador, narradora ou coisa, se diz um tripé. Tripé de câmera mesmo. Temos o elemento do teatro e da dramaturgia. Imaginei como uma metáfora das percepções da personagem, mas, ao longo da trama, as trocas de narrador me fazem agora crer que talvez a narração seja literalmente da coisa, do tripé.

Voltemos à carne e osso. Telma nos presenteia com "Dói para ser perfeito. Mas eu não me importo com a dor. Não, não me importo. Eu faço meus alongamentos, tomo meus remedinhos, passo as minhas pomadinhas, e passa. A dor passa, fica a precisão. Fica o jeito perfeito de emitir aquela nota. Fica a sensação de naturalidade exuberante que acompanha a boa interpretação". Julgava ser ela, a narradora, talvez Maria, mas uma palavra no masculino me confundiu. Falava de música, achava que ela era quem fazia música. Confesso que não consigo responder se aquela palavra que identifica o narrador masculino foi um erro de digitação ou se trocamos para um narrador desconhecido. Mas um narrador que fala bonito.

Apesar do elogio recém feito do narrador que fala bonito, não há basicamente nenhuma alteração de linguagem entre narradores. Claro que se todos os narradores são provenientes de uma mesma classe, um mesmo cenário sócio-econômico, um mesmo background social, não seria de se estranhar que tenham todos linguagem tão semelhantes, mas ainda assim, o simples fato de não sabermos quem está narrando até que o narrador nos dê um elemento concreto nos priva um tanto da personalidade de cada um. Esse foi o ponto que mais me gerou desordem mental na leitura: todos me pareceram a mesma pessoa, com pequenas distinções mais pontuais, como gênero, ou o fato de Roberto ser espírita, ou a narradora estar realmente revoltada com a greve. Jorge, personagem ou narrador, é o homem que se encantou por Maria, sabemos disso porque ele dá um bolo em Roberto para ficar com ela, mas ao mesmo tempo em que quer ser visto com a atriz gostosa mas não quer nada além disso, também é o cara que fica deslumbrado pela escritora. Ao que tudo indica, as duas mulheres são a mesma pessoa.

Em um determinado ponto, nossa narradora comenta "Olha, Jorge, eu não sou escritora, sou atriz, e era isso. E eu não sei porque tu não gostou. Ah! Por que me chamei de poeta? Por quê? Não fica bem? Só ela pode ser poeta? Eu queria que tu me explicasse o que é que confere esse título honorífico a uma pessoa". Ao final do capítulo, pergunta: "Jorge, por que tu parou de gostar de mim?". Teria Jorge algum fascínio por escritoras que o tenha levado à decepção por ela não o ser de fato? Mas e a atriz com quem ele queria ser visto?

Estamos literalmente na metade do livro. Eu, com meu lápis na mão e minhas flags de post-it, já não sei mais nem quem eu sou. Há um homem poeta. Eu não sei quem ele é. Concluo que Jorge trocou a narradora por Maria. No fim, não me parece que isso se confirma, já que decretei que a narradora e Maria são a mesma pessoa.

Da metade pro fim do livro as vozes de misturam, cada vez mais. Ela, seja quem for, já não está mais no ônibus, fala de tomar uma cerveja com alguém, lá em cima. Só sabemos do ônibus. E da mulher de vermelho. Maria. Que dança, canta, interpreta. "Não faça nada com meu filho", pede Jorge em carta.

Embora mantenha minha queixa da metade da resenha de que as vozes só se misturam dessa forma a ponto de não sabermos quem narra cada capítulo ou descobrirmos através de informações bem pontuais porque faltou, nesse curto espaço de 106 páginas, uma diferenciação mais contundente das personalidades dos personagens, também enxergo um mérito aqui: é uma história contada em ordem não cronológica, de forma não linear, sob os diferentes pontos de vista de todos os envolvidos nela.

Sim, conseguimos montar parte do quebra-cabeça que Telma criou. Essa construção da personalidade dos personagens teria nos facilitado entender que são personagens diferentes, com visões diferentes dos fatos, mas não era essa a intenção da autora. O simples uso da alegoria da mulher de vermelho me deixa segura para dizer que a autora queria mesmo que o livro não fosse uma narrativa como estamos acostumados.

Ao criar uma narrativa dessa natureza, Telma assumiu um risco enorme. Acho louvável. Assim como os diretores citados no começo da resenha, cujas obras dividem opiniões entre os que não entenderam nada e detestaram, os que não entenderam nada e acharam genial exatamente por isso, os que fingem que entenderam por medo de parecer menos inteligentes por não terem entendido e os que entenderam e gostaram ou não da narrativa. O risco de Telma mora exatamente nessa ambiguidade (termo errado, porque são várias opções e não apenas duas, mas vocês entenderam, né?), ela pode tanto ser vista como uma autora brilhante que contou uma história de uma forma tão peculiar que é de se espantar que ela mesma tenha conseguido manter o raciocínio narrativo no livro inteiro, ou ser vista como uma autora que jogou qualquer coisa de qualquer maneira entre aqueles que inclusive abandonarão o livro sem chegar ao capítulo final, em que ela mais ou menos nos explica um pouco melhor quem é quem.

Em termos gerais gosto da ideia de o livro ter várias vozes que contam as histórias a partir do seu ponto de vista. Também não desgosto da ideia de ter capítulos que parecem completamente alheios ao livro - como a existência de Cecília ou a própria Claudina, embora eu aprecie o contexto em que Claudina aparece no livro.

Mas uma coisa é inegável na obra de Telma: ela torna qualquer julgamento de um leitor ou resenhista mais atento bastante difícil. Eu poderia dizer que detestei o livro porque tive muita, MUITA dificuldade de acompanhar as trocas de narradores ou de compreender quem é quem e quem faz o que, mas ao mesmo tempo não posso ignorar que a autora construiu uma narrativa ancorada na confusão, no desencontro, nas várias versões de uma mesma história e em metáforas bem executadas, como da mochila pesada, do partir, paralisar e da própria mulher de vermelho. Como julgar ruim um livro que atingiu os objetivos da autora?

Não tenho resposta a essa pergunta. Se me perguntarem se gostei do livro também não saberei responder. Como qualquer ser humano, não gosto de não entender alguma coisa, de me deparar com algo que em uma primeira vista não me parece fazer nenhum sentido, mas como escritora, leitora e resenhista, também me fascina quem assume riscos e trabalha "fora da caixa". "Lugares Ogros" é, sem dúvida, uma aventura.
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Lugares Ogros
Telma Scherer

Caiaponte Edições: Florianópolis, 2019.
106 páginas
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Telma Scherer é artista e professora do Departamento de Língua e Literatura Vernáculas da UFSC. Como poeta, publicou Desconjunto, Rumor da Casa, Depois da Água e Entre o Vento e o Peso da Página.

~Maya


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