segunda-feira, 16 de setembro de 2019

Poesia em carta

Marco Aurélio de Souza me abordou timidamente com um poema um tanto peculiar. Lembro que achei graça porque ele, como muitos autores que me procuram, queria mostrar seu trabalho inseguro se estaria à altura do Bibliofilia. Pois bem, well (já entrando no clima do poema), não entendo muito disso de "nível de" porque, exceto aquilo que é muito escandalosamente tenebroso (um livro racista, por exemplo), ser bom o bastante para conquistar esse espaço é tipo sal à gosto: o tempero varia conforme o paladar.

Não me sinto confortável em fazer esse tipo de julgamento, e o blog não foi feito para mim, somente por mim. Ele é para o leitor, e o leitor é talvez o conceito mais diverso que existe. Para estar à altura do blog, só precisa ser literatura e não trazer em seu conteúdo nenhum tipo de discriminação, que pra mim, como curadora, texto discriminatório não é arte, é outra coisa bem diferente.

Me comprometi a ler o poema, nessa verificação se eu não abriria as portas do Bibliofilia para algo que o leitor bibliofílico não merece ser exposto e me deparei com um poema que na verdade é uma carta, ou uma carta que na verdade é um poema.

Confesso que entre um ou outro verso de tom mais dramático, achei em geral o poema divertidíssimo. Não muito depois recebi dois livros do autor, para futuras resenhas, tenho a sensação de que vai ser uma experiência agradável.

Mas estão na fila, e espero que o autor compreenda que a fila não é pequena e eu sou só uma. Vai chegar sua (segunda) vez. Por hora, conheçam esse peculiar poema de Marco Aurélio de Souza.



My dear friend Djami


My dear friend Djami, informo-lhe que ontem
Recebi o seu livro, devorando-o no mesmo instante.
Receio, porém, não ter nele encontrado qualquer
Vestígio de poema, ao que lhe dou notícia por supor
Tratar-se de algum equívoco ou mistake. Sim,
É o que lhe digo, não encontrei em seu livro qualquer
Lírio ou conhaque juvenil, sequer a virgindade de um
Pôr do sol no fim da linha: tudo se passa
Como se o autor destes riscos estivesse
Meio crazy meio mad meio caído
Em cânticos e rezas vazadas em um mix
De barbarismos antigos, que certamente fariam
Muito sentido em Pentecostes, mas não aqui,
Em nosso clube de odes à beleza da forma sadia.
Assim, devolvo suas obras completas, mistery Djemi,
Para que corrija esta falha com a língua
– Pois em seu livro sequer existe uma língua
E cá em meu país falamos português com
Correção, assim como se escreve às gramáticas.
Admitimos certos estrangeirismos, off course,
Mas nunca aqueles que se gestam dentro da própria
Nação, ao que lhe censuro a tendência promíscua
Pedindo encarecidamente que, em nova remessa,
Escreva-me sem fazer uso de suas próprias palavras.
Elas são suas e, como seu corpo – que neste compêndio
De elementos naturais (selvagens mesmo, eu diria),
O amigo também expôs de forma assaz indevida –,
Guarde-as para quando estiver ao chuveiro ou sozinho
Com parceirx(s) íntimx(s) que lhe deseje(m) a nudez.
Sem mais para o momento, confesso-lhe, contudo,
Que os arranhões feitos em mim por sua obra
Certamente não foram de todo o mal, e seu invólucro
De saliva aliviou-me a sede por dentro, ao que lhe peço,
Por justiça à consciência, que em sua resposta me envie
Mais destas letras cujo acento jorrando em nosso rosto
Causam este estranho fascínio ou efeito afrodisíaco
Na pressão – em que pese ausente de poemas,
O seu livro lambuzou-me nalguma forma de prazer
Desconhecido, não sei se mineral, vegetal, animal
Ou humano, mas desconfio deva ser a sensação
Daquele que mira a vulva hipnótica da Mãe Gaya
– a rainbow rising on my body, like a dream.

_____________________________

Marco Aurélio de Souza é autor, entre outros, de Travessia (2017, poemas, Kotter), Anjo Voraz (2018, poemas, Benfazeja) e Os touros de Basã (2019, contos, Kotter/Patuá). Editor no selo Olaria Cartonera e na página O Pulso - decálogos sobre a poesia viva, atualmente, é doutorando em Estudos Literários pela UFPR. Vive em Ponta Grossa/PR.

Foto de Celso Margraf
~Maya

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