O ano é
2016, ano eleitoral. O candidato da situação passa com folga para o segundo
turno enfrentando o até então vereador Daniel Guerra (Republicanos). Nessa
altura, a gestão em atuação enfrentava uma verdadeira batalha com os artistas locais
em função de um atraso de mais de 70 dias no anúncio dos projetos contemplados
com a verba destinada à lei Financiarte, quando o tempo então prometido era de
30 dias após o anúncio dos projetos aprovados pelas comissões avaliadoras.
O clima
entre gestão e o segmento era tenso em especial porque a então secretária da
cultura havia se licenciado do cargo para concorrer a uma cadeira do
legislativo e o prefeito em atuação estava demasiadamente envolvido na campanha
de seu candidato, à época, o professor Édson Néspolo.
O
centro do debate, entre os artistas, era a lei de fomento à cultura, o
Financiarte, que, desde sua criação, em 2003, tem sido o maior e mais eficaz
instrumento de promoção cultural da cidade. Para se ter uma ideia da
importância dessa lei, passaram por ela o grupo Yangos, que concorreu ao Grammy
Latino e tocou na Copa da Rússia, e a escritora Natália Polesso, que teve um de
seus livros trazendo à Caxias do Sul o Jabuti, um dos mais relevantes prêmios
literários do país.
O mau
andamento do Financiarte de 2016 – edital em que meu segundo romance, Histórias
de Minha Morte foi contemplado – foi um dos fatores que contribuíram com a
vitória de Daniel Guerra naquele segundo turno, tendo a manutenção dos valores destinados
à lei como promessa de campanha. Para que se entenda, a lei, até a chegada de
Guerra ao poder, previa uma destinação de no mínimo 1% e no máximo 2% da
receita obtida pelo município através da arrecadação do IPTU e do ISSQN. Pelo
histórico, o valor de destinação ao Financiarte via legislação até então
vigente variava de 1,8 a 2 milhões, o que garantia uma média de 60 projetos
aprovados em 7 segmentos da arte.
No ano
de 2016, por exemplo, mesmo com toda a confusão e os 70 dias de atraso que
quase custaram a anulação do edital (e problemas cardíacos em mim, já que era o
edital em que eu participava), 71 projetos foram aprovados e a verba destinada
foi de R$ 2 milhões.
Dentro
da economia da cultura, um investimento desse tamanho representa um retorno
imensamente maior à comunidade. Para não entrar em muitos detalhes porque isso
valeria um livro inteiro para ser discutido, não apenas os projetos aprovados
geram milhares de empregos e retorno em impostos (e claro, consumo dos
empregados que aumentam seu poder de compras) como garantem atividades
culturais gratuitas à comunidade pelo ano inteiro, já que cada artista
contemplado assume um compromisso com a prefeitura de contrapartidas ao
município. No caso da literatura, exemplares dos livros são distribuídos para
bibliotecas e órgãos públicos, o valor de venda é mais baixo que o valor de
mercado e o artista participa de ações junto à comunidade.
Enquanto
ainda aguardava o desfecho do edital de 2016, estive com o então candidato
Daniel Guerra, ocasião em que o presenteei com uma antologia de escritores
premiados no concurso literário promovido pela Prefeitura, expliquei
resumidamente a economia da cultura e a devolução do PIB que a cultura
proporciona e o lembrei que Caxias do Sul já foi Capital Nacional da Cultura
exatamente por termos artistas de todos os segmentos que colocaram a cidade no
mapa do mundo com suas artes. Obtive dele, olho no olho, a promessa de manter
os investimentos na pasta, e soube depois que outros artistas também o
procuraram nesse período.
A
própria campanha de Daniel Guerra prometia, sem meias palavras, a manutenção e
o aprimoramento da lei caso fosse eleito. Bom, ele foi. O resultado, já no
primeiro ano de gestão, foi devastador. De R$ 2 milhões investidos nos anos que
antecederam sua chegada à prefeitura, a verba caiu para R$ 600 mil. Aí o
problema era mais embaixo, porque o valor correspondia à 30% do valor mínimo
que ele poderia destinar ao Financiarte segundo a lei. Ou seja: tínhamos ali um
crime de responsabilidade claro e perfeitamente tipificado.
O
caminho natural para um crime de responsabilidade cometido por um membro do
executivo é claro: impeachment. Por algum motivo nunca esclarecido, mesmo com
crime de responsabilidade no descumprimento da lei – situação prevista pela
Constituição Federal para a destituição de um governante – o pedido,
protocolado e assinado por dezenas de pessoas de vários segmentos da sociedade,
foi rejeitado pelo legislativo.
Sem
nenhuma intenção de cumprir a mesma lei que prometeu manter e aprimorar em
campanha e próximo ao anúncio de que no ano seguinte sequer teríamos a abertura
de um edital, o Prefeito conseguiu, em manobra jurídica muito bem articulada, vencer
no TJ um processo para inconstitucionalidade do atrelamento da verba do
Financiarte à arrecadação do município, garantindo assim não somente que ele
não possa mais ser responsabilizado por não repassar os valores previstos na
lei como deu a ele o poder de manipular ao seu bel prazer todo o andamento
cultural da cidade. Inclusive acabar com ele, como vem acontecendo.
Como
anunciado, em 2018 não houve edital. As perdas em relação ao PIB, geração de
impostos e empregos e de oferta de atrações culturais à comunidade são
incalculáveis. E foi nessa situação de depredação cultural que chegamos em 2019
munidos de uma desmotivação descomunal, em especial quando se anunciou que os
valores do edital iriam de R$ 2 milhões em 2016 para R$ 150 mil em 2019.
Em
junho deste ano, depois de divulgados os pouquíssimos contemplados com o
Financiarte, o Jornal Pioneiro publicou uma matéria relatando que o gasto com
café somente no prédio do poder executivo está muito acima do valor total
destinado ao fomento cultural na cidade, cuja justificativa do prefeito é
sempre a de que o valor da cultura foi retirado da pasta para outras pastas
emergenciais; informação que não se confirma quando se verifica a situações e o
descontentamento das outras áreas consideradas mais prioritárias, enquanto uma
questionável reforma no gabinete do prefeito consumiu pelo menos R$ 50 mil
segundo informação publicada no Jornal Pioneiro em julho do corrente ano.
Mas
como nem tudo são trevas e a cultura está sempre caminhando com um alvo na
testa, também sempre é tempo de uma reação. É exatamente este o fenômeno que
está acontecendo na cidade. Não que a “velha guarda” da cultura caxiense esteja
dormindo no ponto, mas os jovens talentos, aqueles que hoje estão sentindo na
pele os efeitos do destroçamento das políticas públicas de fomento à cultura em
suas tentativas de iniciar uma carreira no meio, resolveram se unir.
Foi da
noção de que algo precisa ser feito que os jovens Arthur Della Giustina, Ariel
Fedrizzi, Emely Polli, Nicolle Polli, Gabriel Abu Hilu e Gonçalo Duarte uniram
forças e criaram o Coletivo Cerco Arte – Ser com Arte. A ideia do coletivo é
justamente propor a união dos artistas em torno da causa da cultura para
mostrar aos gestores que eles são, acima de tudo, funcionários públicos, e não
imperadores, eles é que estão a serviço do povo e que o povo tem o direito e
merece acesso à arte e à cultura.
Gabriel Abu Hilu, Nicolle Polli, Emely Polli, Ariel Fedrizzi, Arthur Della Giustina e Gonçalo Duarte - Membros do Coletivo Cerco Arte - Ser com Arte e idealizadores do evento Cerco Arte |
Clara Sousa |
A
primeira grande ação do coletivo aconteceu neste sábado, 14 de setembro, na
praça da prefeitura. De forma humilde e até mesmo despretensiosa, o grupo
construiu um varal poético com trabalhos próprios e de outros poetas como Clara
Sousa, Maya Falks (eu), Nil Kremer e Dinarte Albuquerque Filho e promoveu atrações
como declamações, apresentações musicais, slams e batalhas de rap.
Segundo
um dos idealizadores do evento, Arthur Della Giustina, o objetivo da ação “é
criar, fomentar, defender a cultura, a liberdade de expressão, a liberdade
artística na nossa cidade de Caxias do Sul, pois infelizmente essas áreas vêm
sofrendo uma constante agressão pelo poder público, pelo executivo, e
justamente para criar esse hábito cultural em Caxias do Sul, para que não
apenas o poder público, mas os cidadãos vejam a cultura da forma como ela deve
ser vista. Nós somos cultura, essa que é a verdade. Nós fomos cultura, somos
cultura e vamos criar novas culturas para o bem da comunidade em que vivemos”.
Afro T.I. e AuOruo Taiara |
Os
objetivos apontados por Arthur foram muito bem explorados no evento, sejam em
declamações inflamadas pelos idealizadores, explorando temas sociais, ou a
participação de outros artistas, como Arlindo Junior (Afro T.I.) e sua sobrinha
AuOruo Taiara, cujas declamações de versos ligados às desigualdades e ao
racismo arrancaram aplausos entusiasmados da plateia, que, apesar de pequena
pelo clima chuvoso e pela própria falta de hábito de prestigiar eventos dessa
natureza, era diverso e muito participativo.
Membros do Slam Feeling |
Depois
de uma apresentação comovente de Luti Barbosa, músico de rua, que declarou ao
final da primeira canção estar emocionado por ter uma plateia atenta por estar
acostumado a ser ignorado tocando pelas ruas da cidade, o evento foi encerrado
de forma brilhante com poesia de rua, promovido pelo Slam Feeling, com uma
surpreendente batalha de rap.
Durante
os últimos movimentos do evento, os jovens organizadores distribuíram as
poesias do varal, fechando a iniciativa da melhor forma possível.
Varal poético |
Obviamente
nenhum dos jovens organizadores espera que a ação vá trazer mudanças reais no
orçamento do Financiarte ou na maneira desastrosa como a atual gestão lidou com
a questão da cultura, mas é sempre preciso começar de algum lugar. São jovens
na faixa dos 20 anos, artistas já completamente conscientes da sociedade em que
vivem e da responsabilidade que têm de manter viva a cultura não só na cidade,
mas no mundo, já que o coletivo que eles formam é um entre milhares de
movimentos de jovens artistas que estão se mobilizando.
Apresentação musical com Emely e Nicolle Polli |
Para
artistas com mais tempo de estrada, como eu, como Dinarte Albuquerque Filho, como
Juliano Fantin, que estiveram presentes, ou promotores de cultura como o
produtor cultural Claudio Troian e a conselheira de cultura Cecília Pozza, que
também integraram o evento, ver essa nova geração fazendo seus primeiros
movimentos de protesto e de luta pela cultura é acalentador. É uma geração que
está aprendendo cedo a usar a sua voz, uma geração que pode ter futuros líderes
ou nomes de sucesso que seguirão batalhando pela cultura como sua principal
bandeira.
Talvez,
para quem olhe de fora, um varal poético, declamações, apresentações musicais,
slams e batalhas de rap podem parecer pouco, ineficazes, mas é o primeiro grito
de uma geração que promete não ficar calada.
Galeria de Fotos
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Maya Falks é escritora, poeta, publicitária e jornalista. Idealizadora e resenhista do projeto Bibliofilia Cotidiana.
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Muito obrigada!
Muito bom essa iniciativa desculpa por não ter participado
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