Indo do geral para o específico, Delalves tem um estilo bastante particular de fazer poesia; em diversos de seus poemas os versos são quebrados para uma continuação na linha de baixo. Não é um estilo inédito, mas também não é comum. Geralmente poetas optam por deixar cada ideia em seu verso para garantir que o leitor leia o verso da maneira planejada pelo poeta, o estilo adotado por Delalves deixa o leitor mais livre para construir o poema, em sua leitura, da maneira que o preferir. É um mérito, mas ao mesmo tempo, um risco; um leitor que respeite o respiro entre versos poderá encontrar dificuldades de se entender dentro do poema.
Esse comentário não é, de forma alguma, uma crítica - até porque não faço crítica, faço resenha - não tenho por função debater licença poética nem questionar o estilo de cada autor. Delalves tem consistência e se coloca fiel a quem ele é, o que mostra que seu trabalho poético não é mera experimentação ou uma paixão passageira. Isso, inclusive, é posto de forma explícita no primeiro poema, finalizado com "para os olhos que morrem / ao ver o mundo sem poesia".
A abertura do livro, a partir de Efêmero, carrega um tom mais claro, mais autoexplicativo e não tão simbólico quanto o que encontramos mais para o final. O poema O Relógio, por exemplo, apresenta uma crítica contundente à pressa, à mecanização da vida, à modernidade que substitui o sentimento humano pelas engrenagens, a carne pelo metal. O próprio poema, em suas vísceras metafóricas, transmite a ideia de frieza, de mecanicidade, da troca da vida pela eletricidade.
O poema seguinte, Tempos de Solidão, segue a mesma onda de crítica, dessa vez apontando o isolamento que toda essa troca do que é humano por máquina nos provoca. A troca da voz e do contato real pelos algoritmos, pelos códigos binários. As paisagens pelas telas. As conexões mudam de significado.
Até esse ponto do livro vemos uma relação perfeitamente entrelaçada onde a vida se esvazia na ausência de poesia enquanto o eletrônico substitui a carne e a tecnologia promove a solidão. Como vimos na própria capa do livro e temos, mais adiante poemas ligados ao outono, talvez seja aí que comece de faço a estação monocromática.
Extemporâneo é aquilo que se manifesta fora do tempo previsto. Nem tudo era pra ser outono, mas se torna. O ciclo da vida é afetado pelos restos deixados por aquilo que se diz e se considera civilização.
Passados os primeiros poemas, o grau de complexidade das metáforas usadas por Delalves aumenta, já não sendo mais tão escancaradas suas críticas, não deixando, entretanto, de estar presentes. Em Maria e José e a Família, o poeta expõe a rotina maçante como se os elementos comuns dessa rotina já fossem parte até do organismo dessas pessoas, as quais a combatem e a vencem, se recusando a serem escravas do relógio. Ao fim, dizendo de Maria, já grávida, como engravidada outra vez, vê-se a metáfora de uma nova vida - venceu-se. A segunda gravidez não é de um filho literal, mas uma nova vida para a família inteira, libertos.
A ideia da liberdade é justamente o que inicia o poema seguinte, "Onde está o humano, meu Deus", em que o poeta inicia com "Pessoa, liberte-me de mim. Pois / quem estou não basta". Já nessa quase metade do livro até o fim, Delalves explora recursos de duplicidade de palavras através do uso de parênteses, como o faz com dois poemas de nomes semelhantes: "A G(estação)" e "As G(estações)". O recurso é pouco visto no início do livro e bastante explorado até seu final, não sei se por coincidência ou por escolha estética do autor.
Outro poema que explora essa estética logo no título é "Desventur(a - viva morte)", certamente aqui com finalidade unicamente visual. O poema, entretanto, se propõe a expôr a dualidade de vida e morte entre os espinhos e a suavidade das pétalas de uma rosa. De início, apresenta um elemento do nosso folclore através da citação do cravo, remetendo à canção do cravo e a rosa, que, por sua vez, faz clara alusão a violência doméstica.
Se aprofundarmos o olhar sobre esse poema, a dualidade de vida e morte aqui exposto não precisa ser necessariamente o concreto, a morte efetivamente consumada, mas a morte simbólica provocada pela ferida, pelo despedaçamento emocional, como um "morrer" em vida.
Pouco adiante, Delalves retoma a crítica aos tempos modernos no poema "O Trágico de Os - o rio e o braço-morto", cuja primeira parte do poema expõe o narcisismo glorificado pela internet, "Efêmero, o tal Post sapiens / idolatra-se nulo; é face / quer status, não pensa, / língua emudecendo estrela. / Da tela aplaude o grito / e cala-se, logo inexiste".
Como um ciclo correndo para um fechamento, depois de retomar a crítica aos tempos modernos, Delalves resgata a paixão pela escrita em uma metáfora quase violenta entra a paixão da escrita e o prazer sexual, no contraste entre a dor e o orgasmo, o sofrimento e o êxtase.
Embora pequeno, Extemporâneo não é um livro simples. Tem um estilo e uma estética única, confesso que ficou, ao final da leitura, a curiosidade de saber quais são as influências de Delalves Costa. É sempre construtivo conhecer trabalhos que fogem da nossa zona de conforto, o trabalho do autor com certeza é um exemplo disso.
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Extemporâneo
Delalves Costa
Editora Coralina: Cachoeira do Sul, 2019
58 páginas
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Delalves Costa é um poeta gaúcho de Osório com 7 livros publicados e participação em diversas antologias e revistas literárias. É membro e sócio-fundador da Academia dos Escritores do Litoral Norte e atua como professor de português, literatura e texto técnico na rede estadual.
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