quinta-feira, 24 de outubro de 2019

Além do tempo

Delalves Costa já esteve por aqui com alguns textos avulsos. Em seguida do envio deles, recebi seu livro "Extemporâneo", que por acaso será lançado nesse sábado (26.10.2019) na Patuscada, em São Paulo. Trata-se de um livro de poesias publicado pela Coralina que já traz na capa um clima outonal reforçado em alguns de seus poemas. Delalves, este ano, está tendo motivos de sobra para celebrações; além do lançamento de seu livro, ainda se tornou Patrono da Feira do Livro de sua terra natal, Osório.


Indo do geral para o específico, Delalves tem um estilo bastante particular de fazer poesia; em diversos de seus poemas os versos são quebrados para uma continuação na linha de baixo. Não é um estilo inédito, mas também não é comum. Geralmente poetas optam por deixar cada ideia em seu verso para garantir que o leitor leia o verso da maneira planejada pelo poeta, o estilo adotado por Delalves deixa o leitor mais livre para construir o poema, em sua leitura, da maneira que o preferir. É um mérito, mas ao mesmo tempo, um risco; um leitor que respeite o respiro entre versos poderá encontrar dificuldades de se entender dentro do poema.

Esse comentário não é, de forma alguma, uma crítica - até porque não faço crítica, faço resenha - não tenho por função debater licença poética nem questionar o estilo de cada autor. Delalves tem consistência e se coloca fiel a quem ele é, o que mostra que seu trabalho poético não é mera experimentação ou uma paixão passageira. Isso, inclusive, é posto de forma explícita no primeiro poema, finalizado com "para os olhos que morrem / ao ver o mundo sem poesia".

A abertura do livro, a partir de Efêmero, carrega um tom mais claro, mais autoexplicativo e não tão simbólico quanto o que encontramos mais para o final. O poema O Relógio, por exemplo, apresenta uma crítica contundente à pressa, à mecanização da vida, à modernidade que substitui o sentimento humano pelas engrenagens, a carne pelo metal. O próprio poema, em suas vísceras metafóricas, transmite a ideia de frieza, de mecanicidade, da troca da vida pela eletricidade.

O poema seguinte, Tempos de Solidão, segue a mesma onda de crítica, dessa vez apontando o isolamento que toda essa troca do que é humano por máquina nos provoca. A troca da voz e do contato real pelos algoritmos, pelos códigos binários. As paisagens pelas telas. As conexões mudam de significado.

Até esse ponto do livro vemos uma relação perfeitamente entrelaçada onde a vida se esvazia na ausência de poesia enquanto o eletrônico substitui a carne e a tecnologia promove a solidão. Como vimos na própria capa do livro e temos, mais adiante poemas ligados ao outono, talvez seja aí que comece de faço a estação monocromática.

Extemporâneo é aquilo que se manifesta fora do tempo previsto. Nem tudo era pra ser outono, mas se torna. O ciclo da vida é afetado pelos restos deixados por aquilo que se diz e se considera civilização.

Passados os primeiros poemas, o grau de complexidade das metáforas usadas por Delalves aumenta, já não sendo mais tão escancaradas suas críticas, não deixando, entretanto, de estar presentes. Em Maria e José e a Família, o poeta expõe a rotina maçante como se os elementos comuns dessa rotina já fossem parte até do organismo dessas pessoas, as quais a combatem e a vencem, se recusando a serem escravas do relógio. Ao fim, dizendo de Maria, já grávida, como engravidada outra vez, vê-se a metáfora de uma nova vida - venceu-se. A segunda gravidez não é de um filho literal, mas uma nova vida para a família inteira, libertos.

A ideia da liberdade é justamente o que inicia o poema seguinte, "Onde está o humano, meu Deus", em que o poeta inicia com "Pessoa, liberte-me de mim. Pois / quem estou não basta". Já nessa quase metade do livro até o fim, Delalves explora recursos de duplicidade de palavras através do uso de parênteses, como o faz com dois poemas de nomes semelhantes: "A G(estação)" e "As G(estações)". O recurso é pouco visto no início do livro e bastante explorado até seu final, não sei se por coincidência ou por escolha estética do autor.

Outro poema que explora essa estética logo no título é "Desventur(a - viva morte)", certamente aqui com finalidade unicamente visual. O poema, entretanto, se propõe a expôr a dualidade de vida e morte entre os espinhos e a suavidade das pétalas de uma rosa. De início, apresenta um elemento do nosso folclore através da citação do cravo, remetendo à canção do cravo e a rosa, que, por sua vez, faz clara alusão a violência doméstica.

Se aprofundarmos o olhar sobre esse poema, a dualidade de vida e morte aqui exposto não precisa ser necessariamente o concreto, a morte efetivamente consumada, mas a morte simbólica provocada pela ferida, pelo despedaçamento emocional, como um "morrer" em vida.

Pouco adiante, Delalves retoma a crítica aos tempos modernos no poema "O Trágico de Os - o rio e o braço-morto", cuja primeira parte do poema expõe o narcisismo glorificado pela internet, "Efêmero, o tal Post sapiens / idolatra-se nulo; é face / quer status, não pensa, / língua emudecendo estrela. / Da tela aplaude o grito / e cala-se, logo inexiste".

Como um ciclo correndo para um fechamento, depois de retomar a crítica aos tempos modernos, Delalves resgata a paixão pela escrita em uma metáfora quase violenta entra a paixão da escrita e o prazer sexual, no contraste entre a dor e o orgasmo, o sofrimento e o êxtase.

Embora pequeno, Extemporâneo não é um livro simples. Tem um estilo e uma estética única, confesso que ficou, ao final da leitura, a curiosidade de saber quais são as influências de Delalves Costa. É sempre construtivo conhecer trabalhos que fogem da nossa zona de conforto, o trabalho do autor com certeza é um exemplo disso.
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Extemporâneo
Delalves Costa

Editora Coralina: Cachoeira do Sul, 2019
58 páginas
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Delalves Costa é um poeta gaúcho de Osório com 7 livros publicados e participação em diversas antologias e revistas literárias. É membro e sócio-fundador da Academia dos Escritores do Litoral Norte e atua como professor de português, literatura e texto técnico na rede estadual.

~Maya


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