terça-feira, 2 de julho de 2019

Poemas de cobra coral

Nos tempos em que fui deixando de ser besta de acreditar que eu seria descoberta pela maior editora do país, teria meus livros traduzidos para 600 línguas e dialetos e, ao final de uma curta jornada, seria a primeira brasileira a trazer o Nobel pras terras brazucas, comecei a desvendar um pouco do mundo literário ao meu redor. O real, o palpável, o lotado de gente boa pra cacete e completamente fodida que vai levar a vida inteira pra ser resenhada por gente de nome importante, ou que talvez nunca figure na lista dos mais vendidos.

Claro que quando comecei a enxergar a vida real que me cerca também dei de cara com gente com pedigree, gente que já foi manchete da Folha, gente que já ganhou prêmio graúdo, gente que já esteve na programação da Flip ou já foi curadora da TAG. Mas também encontrei gente que, daqui do interior do RS onde resido, jamais ouviria falar se não tivesse tirado a viseira da vitrine da livraria bastantão ou do selo que maior status comercial.

Não que eu tenha parado de consumir os autores que todo mundo se derrete quando lê o nome, mas comecei a visitar as lojas virtuais das editoras independentes, de pequeno porte, aquelas em que o editor tá na mesma vibe do autor de trabalhar de coração cheio e bolso vazio.

Foi num desses passeios que conheci o Ian Viana. Mentira, conheci um livro dele. Ian é de Brasília, uma terra onde mora um monte de gente que eu amo loucamente, tipo stalker mesmo, mas Ian eu não conhecia. Não o stalkeei, na verdade só tive acesso a ele quando postei no meu perfil que faria a resenha do seu livro e ele mesmo me adicionou, agorinha, questão de uns três dias, no máximo. Nunca conversamos, peguei seu livro sem fazer a mais vaga ideia do que esperar. Zerada de qualquer conceito prévio sobre Ian como pessoa ou como autor.

O causo é que eu me encantei com o nome do livro, "Eu era aquela cobra coral no quintal da tua infância". Não sabia, a essa altura, sequer que gênero era o livro, mas pouco importava, eu realmente amei o nome. Me fisgou, me picou, e eu queria a cobra coral na minha biblioteca.

O livro chegou. Poesias. TCC me sufocando e o livro foi ficando ali de lado. Prioridade, né amores? Até aquela quarta-feira em que eu chegaria muito cedo no meu compromisso, o livro é fininho, tinha terminado outro de manhã, o outro era magnífico, fiquei receosa de ler esse e achar ruim por ainda estar órfã do outro. 



Um frio do cacete, eu mal agasalhada em um corredor, abri o tal do livro da cobra coral. De pé, esqueci do frio quando cheguei na primeira parte, "vermelho" e mergulhei no primeiro parágrafo:

"Eu era aquela cobra coral no quintal da tua infância em Pium. Você deve se lembrar. Até hoje eu me lembro dos teus olhos de medo e curiosidade. Era uma manhã seca de agosto. Teu pai me acertava com um pedaço de ferro de alguma daquelas máquinas dele e tua mãe chorava dentro de casa".

Foi um soco. A breve prosa ainda continua, e continuou apertando o nó que se formou na minha garganta. Li de novo. E de novo. Não para entender, porque o texto é claro, mas porque durante cada leitura, eu era aquela cobra coral no quintal da tua infância.

Não chorei porque eu estava batendo queixo em um corredor gelado por onde passava gente. Estava de pé, não tinha uma desgraça de um banco pra eu sentar e me encolher, me reduzir a essa cobra coral que vi morrer a golpes de ferro já na primeira página do livro. Vermelho.

O livro é dividido em três partes, nas três cores de uma cobra coral, vermelho, preto e branco.
Não encontrei ligação direta dos poemas com as cores, mas francamente, nem procurei. Nem tudo precisa ser ordenado de forma quadrada, na caixa, o que importa é que poema a poema, eu me sentia mais cobra coral.

Os primeiros poemas se converteriam em prosa com pequenas adaptações. Ian Viana por vezes abusa no sexo, abusa nas drogas, mas abusa também em um lirismo engajado que dá vontade sair marchando com o livro na mão. Ainda assim, meus poemas favoritos no livro são singelos, doces, quase um contraste em um livro de fúria. 

A cobra tem três cores, a obra tem muito mais de três nuances. 

Em um livro de poemas é comum termos os poemas não muito bons, os bons e os ótimos. Ian descartou a primeira classificação, vai do bom ao ótimo sem dificuldade.

Mas aquele primeiro parágrafo... ah, aquele me pegou de jeito. Ele me dói (e olha que eu tenho fobia de cobra), ele me fere bem dentro da alma, e foi aí que eu entendi que esse livro se tornou inesquecível.

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Eu era aquela cobra coral no quintal da tua infância
Ian Viana

Patuá - São Paulo, 2018
79 páginas
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Ian Viana nasceu em 1995. Diretamente de Brasília, se diz ex-militante, ex-cafajeste e ex-búfalo galopante dos sonhos. Discípulo espiritual de Roberto Piva (que é citado no livro), Ian integra o Coletivo Poético Assum Preto. Também escreve prosa, mas esse é assunto para outro post.


~Maya

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