segunda-feira, 12 de agosto de 2019

Além dos significados

Conheci Ana Elisa em um antigo e desgastante debate virtual sobre os termos "poeta" e "poetisa", gostei do comentário que ela fez no post de uma amiga, já que ambas defendemos a mesma ideia. Pessoalmente, não gosto e não uso a palavra "poetisa", sempre me identifiquei como poeta e acho que essa palavra se resolve muito bem com os dois gêneros (ou mais).

Comento esse fato - embora prefira evitar a fadiga - porque à ocasião, uma pessoa aparentemente disposta a me fazer aceitar a alcunha de "poetisa", usou uma fotografia do dicionário para provar seu ponto, um ponto que, aliás, não me convence.

O fascinante da coisa toda é que conheci Ana em um debate sobre uma palavra. No mesmo dia, outra amiga comentava sobre a beleza de seu novo livro, Dicionário de Imprecisões; duas situações em poucas horas me levaram a conhecer Ana, e, claro, stalkear seu perfil. Cinco minutos de passeio por lá e eu tive a cara de pau de mandar convite de amizade.

Não muito depois, seu livro estava nas minhas mãos. Sim, uma belezura de livro. Nenhuma foto é justa o bastante para a beleza estética de aparente simplicidade. Um livro macio, de capa com relevo em papel especial. Uma diagramação de tirar o fôlego, de tanto em tanto, uma folha vegetal ornada com uma ilustração assinada por Wallison Gontijo.



De cara, o livro dá vontade de abraçar. Nos conhecemos debatendo uma palavra. De repente, em minha mão, um dicionário impreciso de autoria dela. Um livro que eu definiria, já de imediato, como "delícia". Livro para ler várias vezes, para ler alto, para ler para os amigos, para presentear, distribuir, encontrar coisas novas a cada passada de olho.



São poemas. E não são. Algumas palavras ganharam poemas na sua forma mais tradicional. Outros, verbetes, ironias, alfinetadas, reflexões. A riqueza do dicionário de imprecisões de Ana deixaria Aurélio com inveja.

A própria palavra "dicionário" contém um poema que marquei com postit para declamação futura em vídeo, porém, minhas marcações são inúmeras. Sublinhados e diálogos com o livro. Nessa palavra em especial, dialoguei à lápis, trazendo o que pra mim foi o ponto central do debate particular que tive com aquela pessoa mencionada no início do texto: o significado no dicionário (ou sua origem enquanto palavra) não necessariamente traz em si o significado da palavra dentro do contexto social e histórico em que ela foi cunhada.

Usamos cotidianamente palavras cujo significado no dicionário é totalmente inofensivo, mas o contexto onde a palavra foi criada não é nem um pouco bonito, muitas vezes sequer aceitável (onde entra minha opinião imutável sobre o termo "poetisa", por exemplo).

Aliás, dentro desse mesmo debate, Ana brinca:
"Poeta: substantivo comum de dois ou mais gêneros, no entanto controverso porque um se considera em sua posse exclusiva."

As alfinetadas não terminam por aí - e dão um sabor ainda mais doce ao livro.

Na palavra "grisalho", por exemplo, Ana define: "adjetivo masculino sem restrição para homens". A crítica no poema é clara: homens grisalhos são tidos como elegantes, mulheres como desleixadas. Já em "morte", Ana define: "substantivo feminino, comum a todos, mas mais às mulheres por motivo fútil". Uma frase simples, formal, típica de dicionário, com uma denúncia gigante em tão poucas palavras.

Além das denúncias e alfinetadas, o livro brinca, se diverte, como na palavra "Carinhoso", onde, em certo momento de sua definição, Ana nos presenteia com:

"Carinhoso é uma das canções que mais arrepios provocou e provoca aos ouvintes sensíveis de todas as décadas de ao menos dois séculos.
Meu coração, não sei por que, bate feliz, quando te vê, a começar grave e terminar aguda, é quase inalcançável para a extensão vocal da maioria das pessoas, menos as que cantam durante o banho".

"Branco" é outra palavra que vai além de uma definição esperada no dicionário, proporcionando uma experiência que explica melhor do que um texto formal.



Dicionário de Imprecisões é um dos livros mais complexos em termos de significados que já li. Ele é simples em sua forma: algumas palavras e uma grande brincadeira em torno de seus significados informais, cotidianos, experienciais; em uma diagramação notadamente bela, agradável, que cria imediata intimidade com o leitor. Ele é intenso, complexo, contundente, irônico, divertido e criativo em seu conteúdo.

Não subestime o poder de reflexão de um livro com tantos toques de humor em um formato tão despretensioso. Ana se propôs ultrapassar o limite dos dicionários em um seleto número de palavras, e o fez de forma surpreendente.

Em meu cadernos de leituras, grifei a vontade de ter um estoque dele para sair presenteando pessoas, torcendo que leiam com o mesmo olhar atento que eu dediquei a ele. Não é um livro de poemas convencional (nada contra livros de poemas convencionais, inclusive eu os escrevo), até porque nem tudo ali é um poema, as vezes é um tapinha na cara da forma mais simpática possível. A denúncia é feita sem alarde ou sensacionalismo, mas está ali, para a gente rir por um minuto e refletir depois, sem prazo para terminar.

Marquei muito mais coisas do livro para comentar, mas farei, com o tempo, a devida justiça a ele em vídeo, com declamações e possíveis comentários adicionais dos poemas que já deixei marcados.

Por hora, diria que se o livro é sobre significados, ele mesmo significou muito pra mim.
_____________________________________

Dicionário de imprecisões
Ana Elisa Ribeiro

Belo Horizonte: Impressões de Minas, 2019
125 páginas
_____________________________________

Ana Elisa Ribeiro é autora de livros como Anzol de Pescar Infernos (semifinalista do prêmio Portugal Telecom), Xadez e Álbum (prêmio Manaus). Foi uma das editoras da coleção Leve um Livro, projeto que distribuiu publicações gratuitas de poesia contemporânea por três anos em Belo Horizonte. Participou de eventos literários no Brasil, Colômbia, Cuba e França e publicou em diversas antologias em português, inglês, espanhol e francês. É Doutora em Linguística e professora do CEFET-MG. 

~Maya

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Finaleira

Esse é o último post desse blog. CALMA, NÃO PRECISA DESMAIAR! Não, o Bibliofilia não acabou! O causo é que no finalzinho de outubro, mais...