Ao mesmo tempo, apontei o que considerei que poderia ser melhorado. Dialogamos. Deixei claro a ela que minha opinião pessoal não deve servir de termômetro para a identidade dela como escritora. Por mais que eu tenha uma longa estrada de leitura e escrita, uma opinião pessoal ainda é uma opinião pessoal e poucas coisas são mais subjetivas do que a arte.
Sim, gostei do que li. Me senti incomodada com alguns elementos (ou a falta deles) e comentei com ela. Ela revisitou o conto e o assumiu por completo. É a identidade dela. Ela abraçar esses elementos me fez gostar mais ainda do conto, porque o primeiro passo para uma carreira literária é encontrar seu próprio jeito de escrever. Fórmulas devem ser exclusivas das ciências exatas. Usamos matrizes literárias pré-fabricadas para dar começar, treinar os primeiros versos ou as primeiras frases. Depois a gente tem que ser capaz de caminhar sozinhos.
E desviar caminhos. E construir novas estradas e pontes.
A maturidade literária é impossível de ser classificada porque a mutação pode ser constante. Não era Fernando Pessoa quem alimentava várias personas literárias diferentes para poder escrever cada dia de um jeito novo?
Me encantou que Carolina abraçou seu conto. Nem ela está errada por não ter incluído os elementos que senti falta, nem eu estou certa por ter sentido falta dele. Está bem escrito, isso ficou claro pra mim desde a primeira linha. E agora sei que tem identidade. Carolina encontrou seu norte, e eu faço sinceros votos de que seja uma estrada longa e próspera sob seus pés de escritora.
Conheçam "O ovo de Ariel", de Carolina Valverde.
O ovo de Ariel
Doutora, antes de me levar para a
sala de cirurgia, gostaria de lhe contar um caso que aconteceu comigo há muito,
muito tempo atrás. Quando me recordo, sinto a vida esticar. E ela está muito
encolhida pro meu gosto. Muito. Será que a senhora me emprestaria seus ouvidos?
Vou tentar não me demorar. Sei que o anestesista está me esperando e que o
tempo não brinca em serviço. Sei bem disso. Na carne. Essa lembrança é a única
herança que posso deixar. E sei que a vida tem prazo de validade, sem
garantias. Sei de coisas que preferia não saber. E somente as histórias
ultrapassam nossa vida tão efêmera. Faça essa caridade de me ouvir.
Tudo aconteceu no primeiro mês após eu
ter sido transferido para a Delegacia Regional Tenente Leôncio Neves. Fui
recrutado para trabalhar na equipe de buscas a pessoas desaparecidas ou
sequestradas. Naquele dia, me lembro muito bem, o calor judiava com as plantas
e mucosas. Eu só fazia suar. A manhã seguia arrastada, até que, depois do
almoço, recebi um telefonema. Tratava-se de uma mãe apavorada, dizendo que seu
filho de treze anos havia desaparecido dentro de uma clínica médica. Os
funcionários do estabelecimento estavam atônitos, pois o menino não havia
deixado rastros. Sumira, de repente. Eu estava sozinho naquela hora. Peguei o
endereço de onde ela estava, recrutei uma equipe de busca pelo rádio, e parti
imediatamente ao encontro dela.
Quando cheguei, Ana estava desolada e
sem forças, deitada em uma maca, e a clínica em total alvoroço. Peguei meu
caderno de notas, puxei uma cadeira, e comecei a pegar os dados para a
investigação. A equipe de polícia estava atendendo a outra chamada e demoraria
um pouco para chegar. Ela se sentou, tomou um gole de água, respirou fundo e
começou a me contar o que tinha acontecido. Disse que era só ela e ele na vida.
Não tinha mais ninguém na família. Não tinha a quem pedir ajuda e por isso
ligou para a delegacia. Há mais de três horas todos estavam procurando o menino
pelas redondezas e ninguém, ninguém, havia dado notícias do paradeiro de seu
filho.
Ela tinha levado Ariel para uma
consulta com o ortopedista de coluna por conta de um ovo que nascera no meio de
suas costas, entre as omoplatas. Fizeram a consulta normalmente, e quando
estavam saindo, ela o pediu que esperasse, pois teria que esvaziar a bexiga
antes de pegar o ônibus para a longa viagem que fariam até onde moravam. Não
aguentaria esperar chegar em casa. Foi isso. Simples assim. Quando saiu do
banheiro, ele já havia sumido. E as secretárias não viram o menino sair. Não
viram!
Perguntei a ela se eles haviam
brigado, ou se havia alguma chance dele ter, simplesmente, fugido. Se esse
sumiço não poderia ter sido voluntário. Nesse momento ela se encostou na parede
atrás da maca e começou a me contar sobre Ariel. Disse que não, não haviam
brigado. Que o filho era manso e sempre fora muito obediente. Perguntei se o
diagnóstico do médico tinha sido muito grave e se será que ele poderia ter
ficado assustado com a notícia. Ela disse que não era um problema sério. Era
mesmo uma corcunda postural. Aumento da
cifose torácica. Foi assim que o médico falou. Era isso.
Disse que Ariel era um adolescente
normal, tirando uma única questão que era a sua obsessão por voar. Desde
pequeno, desde que começou a falar, dizia que um dia voaria feito passarinho.
Só queria saber de histórias sobre voos e ficava horas a fio vendo livros, filmes,
revistas ou qualquer outra coisa que falasse sobre o assunto. Um dia ela
resolveu leva-lo ao aeroporto imaginando que ficaria feliz. Quando chegaram bem
perto daqueles imensos aviões, ele disse que não. Não era assim. Que ele não ia
precisar de nada que o fizesse voar. Não queria saber de balões, helicópteros,
aviões... Ele voaria um dia. Ele mesmo! Por conta própria. E o tempo foi
passando. Ariel cada vez mais debruçado nas imagens de seres alados. Tão
debruçado, que um dia a mãe viu um ovo nas costas dele. Estavam em uma loja,
comprando uma camisa social para a primeira festa de gente rica que ele iria.
Quando tirou a blusa, dentro do provador, a mãe viu aquele caroço. Perguntou
pra ele se doía. Ele disse que só um pouco. Ela se preocupou e foi por isso havia
marcado a consulta com o médico. Ela imaginou que deveria ser um problema de
coluna, de tanto que o menino ficava torto. Postura péssima! E não deu outra. A
mãe havia acertado na mosca.
Me contou que quando ele era pequeno,
nos carnavais da escola, fazia questão de se fantasiar de coisas que voassem.
Já se fantasiou de fada, mosquito, abelha, anjo, Hermes, Pégasus, dragão,
borboleta, morcego , pássaro, Phoenix e até de barata voadora. Enquanto
listava, foi contando nos dedos para ver se lembrava das doze fantasias.
Tudo
começou quando ele tinha dois anos. Se alguém perguntasse sobre Ícaro e
Dédalus, sobre pterodáctilos, ele sabia de tudo, de tudo sobre asas, sobre
vento e sobre tempestades. Nesse momento da conversa, a equipe de resgaste
chegou. O tempo urgia. Me despedi da mãe e saí olhando para o céu.
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Carolina Valverde, nascida em Cataguases/Minas Gerais, é fisioterapeuta, musicista e professora. Apaixonada por literatura desde muito cedo e sobrinha de Oswaldo Abritta, um dos fundadores da Revista Verde, sempre recebeu incentivo por parte de seu pai e de sua avó paterna (ambos escritores) em direção à leitura e escrita. Tem na escrita seu remédio e na leitura o seu porto.
~Maya
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