domingo, 18 de agosto de 2019

Sobre estar aqui

Entre todos os autores resenhados por aqui, Marcelo Rubens Paiva é o primeiro que não me conhece, não conhece o Bibliofilia e certamente nem verá essa resenha. Não é o primeiro que não a irá compartilhar, mas inaugura um possível novo segmento do blog: dos autores que não lerão suas resenhas. Esse segmento é uma abertura de portas para, no futuro, começar a resenhar também autores estrangeiros. Por hora, a prioridade ainda são os autores que estão contribuindo com o blog através do envio de seus livros.

Sabia de Marcelo Paiva o básico do básio: autor famoso, encontrou o estrelato nas letras ainda na década de 80. Recentemente, o reencontrei na mídia, não por seu talento inegável, mas pelo ódio bizarro que o eleito presidente de nosso país nutre por sua família a ponto de estraçalhar qualquer decoro de qualquer função pública escarrando no busto do pai de Marcelo, Rubens Paiva.

Foi aí que soube - sim, super alienada eu - que Rubens Paiva foi um deputado federal que teve seu mandato cassado em o golpe de 1964 e desapareceu nas mãos de agentes da ditadura alguns anos depois. Não conhecia a história a fundo, por isso aproveitei uma promoção da TAG e adquiri a obra "Ainda estou aqui".


A obra não é sobre o desaparecimento de Rubens Paiva, mas sim, um livro de memórias de Marcelo tendo como protagonista sua mãe, Eunice Paiva, que faleceu alguns anos depois da conclusão da obra. Marcelo declarou, no material de apoio que a TAG envia junto aos livros, que acreditava que um livro sobre seu pai deveria ser escrito pela mãe, não apenas porque ele era uma criança na ocasião do sequestro de seu pai por agentes do Estado, mas porque ela e sua irmã mais velha também foram detidas com o objetivo único de ampliar o sofrimento à Rubens, para além da própria tortura que, comprovado muitos anos depois, o levou à morte.

Mas Eunice desenvolveu Alzheimer. Sem saber da proximidade do país de um governo que enaltece os horrores vividos por seu pai em sua prisão clandestina, Marcelo resolveu então escrever "Ainda estou aqui". O nome do livro, em primeira visão, faz referência a uma frase dita pela mãe, em seus breves momentos de lucidez, quando a ela se referiam no passado. Não, ela ainda não estava morta. Mas em uma segunda interpretação, "Ainda estou aqui" também faz referência ao pai, cuja prova da morte ficou exclusiva na voz de seus assassinos e em um papel atestando tal fato, fruto de muita luta de Eunice diante de uma justiça lenta, muito lenta. A ossada de Rubens nunca foi localizada, ele jamais pôde enterrar o próprio pai.

O livro é dividido em partes, cuja primeira é 100% focada na infância de Marcelo - e onde cometi meu maior erro. Marcelo conta sua história, sua visão das coisas, enquanto eu esperava relatos mais precisos sobre o trágico destino de seu pai. Nunca foi essa a proposta do livro. O sequestro de Rubens Paiva é parte da história, e não a história.

Mesmo eu caindo no pecado de esperar do livro o que ele não era, nessa primeira parte, ainda fiquei encantada com o poder narrativo de Marcelo. É feio, mas preciso admitir que esse é o primeiro livro dele que leio. 

Ao chegar na parte que eu buscava - detalhes sobre a vida na ditadura sob a ótica de uma criança que viu sua família virar "inimiga da pátria" - senti meu primeiro embrulho no estômago. Nas palavras de Marcelo, "todo mundo que era contra a ditadura era comunista. Todos se tornaram suspeitos, subversivos em potencial. (...) Os comunistas tomariam o poder. Até os não comunistas eram comunistas disfarçados, foram doutrinados, sofreram lavagem cerebral. Muitos que, em 1964, conspiraram com os militares, na missão de impedir que comunistas tomassem o poder e o Brasil se transformasse numa diabólica ditadura do proletariado, perceberam a manobra e foram acusados pelos anticomunistas de ligações com o comunismo".

O embrulho no estômago tem uma razão de ser: nasci 3 anos antes do fim do regime, o que significa que eu mesma não o vivi de fato. Ainda assim, meu posicionamento político já me rendeu diversas vezes o apelido de "comuna" e acusações de que seria eu comunista. O Brasil nunca sofreu de fato uma "ameaça comunista", nem em 1964, nem ao longo de toda a minha vida, que começou em 1982. Ainda assim, o "combate ao comunismo" foi uma das justificativas do golpe de 2016 e base forte nas eleições de 2018. 

O nível de neurose, certamente alimentado por quem sabe que esse risco jamais existiu (em especial depois de 14 anos de esquerda no poder com capitalismo funcionando muito bem), não perde para a neurose dos tempos da ditadura. Voltamos aos tempos em que o menor sinal de descontentamento com o poder vigente já confere a absolutamente qualquer pessoa a alcunha de comunista. Vimos pessoas que atuaram fortemente na queda de Dilma Rousseff e na eleição de Bolsonaro sendo acusadas de serem comunistas por ousarem discordar de uma ou outra decisão do atual presidente.

Não vivi 64, mas quanto mais estudo o movimento político e social que culminou em 21 anos de ditadura, mais percebo que o cenário criado desde a derrota de Aécio Neves, em 2014 é muito parecido. Assustadoramente parecido.

Na obra de Marcelo Paiva, ele cita as aberrações jurídicas promovidas pelo regime para dar um ar de legalidades às barbáries cometidas por opositores - e por opositores, inclua no pacote adolescentes carregando cartolinas, destruídos física e psicologicamente nos porões por pessoas treinadas e com poder de fogo por serem considerados perigosos para o sistema. Bom, não vou entrar em detalhes porque estes são desnecessários, qualquer brasileiro que não esteja fora do planeta nos últimos meses tem acompanhado a revelação de outras aberrações jurídicas criadas para garantir o resultado das eleições presidenciais.

Marcelo, na página 134, questiona: "Quem deu o golpe de 64 pensou mesmo em nos salvar do comunismo?". A resposta, ao meu ver, continua a mesma até hoje, nos fatos que nos cercam hoje.

Embora traga um retrato do Brasil da década de 1970, a obra de Marcelo segue atual. À época a declaração oficial corroborada pela justiça era de que Rubens Paiva teria sido resgatado por guerrilheiros em uma cena de tiroteio digna de cinema. Eunice nunca acreditou. Me admiro se alguém, em qualquer lugar, tenha acreditado em uma história tão cheia de, com o perdão do trocadilho, furos. A farsa foi completamente desmontada anos depois, com a admissão dos próprios envolvidos de que Rubens já estava morto (e provavelmente desovado) na ocasião do suposto resgate.

A própria justiça, ao reconhecer a morte de Paiva, chama a ação militar que culminou na morte do ex-deputado de sequestro, uma vez que não houve pedido de prisão, simplesmente homens armados com fuzis invadiram a casa da família, levaram o pai e mantiveram a família refém, até que levassem a mãe e a irmã mais velha de Marcelo, trancando a residência para impedir a saída dos demais. Só puderam sair de casa depois da chegada de parentes de fora, que tinham uma cópia da chave da casa.

Institucionalmente, a detenção de Rubens Paiva não poderia ter sido mais ilegal. Mesmo em um país onde os direitos civis foram violados pela própria lei através do AI-5, a detenção de Rubens Paiva, bem como sua esposa e filha, foram ações de um grupo criminoso. O Estado teria a obrigação de seguir procedimentos legais mínimos. Isso não aconteceu.

Isso, obviamente, não é exclusividade de um estado de exceção. O próprio autor - se não estiver me confundindo com outros livros lidos anteriormente - compara a detenção e morte de seu pai com o caso que aconteceu com o pedreiro Amarildo, que gerou comoção nacional. Infelizmente não o suficiente para provocar uma mudança no sistema.

Ao finalizar os relatos da sua visão, ainda criança, do que aconteceu com o pai, Marcelo pincela um pouco do que se tornou a vida da família, inimiga da pátria, que viu parte dos amigos desapareceram por medo de se associar a eles, outra parte por não se misturar com "comunistas", que eles não eram.

Posteriormente, Marcelo retorna à Eunice, mulher de garra que virou símbolo na luta das famílias em busca de seus mortos. Talvez toda sua força tenha sido o sacrifício que levou seu cérebro ao colapso. Eunice Paiva peitou autoridades ainda durante o regime, uma coragem de poucos, sendo ela visada como esposa de um "comunista".

"Ainda estou aqui" é um documento histórico de uma importância ímpar. E como eu queria que fosse apenas mais um livro resenhado para esse blog, e não um documento histórico. Menos ainda que seguisse tão atual.
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Ainda estou aqui
Marcelo Rubens Paiva

Alfaguara: Rio de Janeiro, 2015
293 páginas
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Marcelo Rubens Paiva é escritor, dramaturgo e jornalista. Seu primeiro livro, Feliz Ano Velho, foi gigantesco sucesso e o tornou nacionalmente conhecido. Também é autor de outras obras adultas e infantis e é colunista do jornal O Estado de São Paulo.

~Maya

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