sábado, 29 de junho de 2019

Conhecendo Delalves Costa

Como blog recém-nascido, muita gente ainda não sabe ao certo a que ele se propõe, então passo a passo a Bibliofilia vai mostrando sua cara. Depois de duas resenhas consecutivas (e aí, já leu elas?), agora é a vez de abrir espaço a esse poeta que me procurou quando esse projeto era ainda um embrião sem nome.

Recebi com carinho a primeiríssima contribuição a esse blog e estreio com Delalves Costa essa humilde vitrine de nossos talentos nacionais. Confesso que minha maior alegria ao receber o material dele foi ele ter passado fácil pelo filtro da curadoria (imagina que desagradável se o primeiro material enviado fosse reprovado?).

Enfim, conheçam o primeiro poeta a acreditar nesse projeto!


Desventur(a – viva morte)


Aliou-se ao vento, brisa
por dentro carcomida de temporais
despedaçada, eis a rosa
(adoentado, eis o cravo)

à esquerda, noturna flor
espraiando agrotóxico
à direita, o mau tempo
(o perfume moribundo)

– não há pólen na língua
a flor elegeu tempestade, ademais
é extrair voz do espinho
(da pétala, a viva morte)


Maria e José e a Família

          I
Às seis acordam (quando não antes)
José e sua impessoal família.
Escovam o amargor do sono
e gargarejam o pesadelo,
penteiam o espreguiçar
das noite-noitadas; e mal dormido
vestia jejum ainda, desconjuntado
no rosto leite coalhado
no cabelo pão esmigalhado
a bocejar sol requentado
José (e a impessoal Família)
neste dia, sem ser horário marcado

          II
vestia jejum ainda, desconjuntado
José e a família. Neste dia
sem horário marcado
(após o gozo-de-mel
Eva e Adão, trajados
como há muito não se via)
amanheceram à janela
em aquarela, pintados
sob o orvalho e poesia.
Livres como o sol neste dia
enquanto José chorava
para íntimos risos, estava Maria.

          III
Em primeira pessoa, estava o José
Alves e a sua Família; aliás,
neste dia, acordaram tarde.
O trabalho ficou no centro,
fechada no livro, a escola
no bolso furado, o mercado
e o almoço foi em Família.
Neste dia, José se ajoelhou.
Maria (já de oito semanas)
antes da boca, incontida, bem
ser/vida entre anseios, engravidou.

O Efêmero

Já não leem o que escrevo
no agora, julgam-me apenas
pela inconstância do relevo.
Morrem a metáfora e o olfato
nos olhares que agonizam
sobre a semântica do ato...
Efêmero, alguém no outro lado
teme pela vida que logo
cairá no mundo da língua vazia.
Aqui: o amor erógeno. E lá
(entre carros e sombras)
está o caos sem fantasia;
vultos, inexistentes em si
entreolhamo-nos. Às Ruas,
nós estaremos apressados
pela interminável respiração
que se alonga já sem fôlego
para os olhos que morrem
ao ver o mundo sem poesia.


O Relógio

Me apunhalaram. Uma carne fria
com estímulos eletrônicos,
assim deixaram minha alma.
Me arrancaram o susto de vida
e deram corpo ao previsto.
A alma que soprava arrepios
agora é piano sem lírica
e palpável às mãos do mundo.
Carne de metal: não chora,
não contempla. Só vê.
Frio é o afago, como é
também o nosso tempo
– esse homem de muitas portas
e chaves humanas,
e contudo vazio de mistério.
Arrancaram da caixa mágica
a lírica, a música e o susto.
O sangue já não é quente...
O corpo já não me escuta...
Me apunhalaram ainda n'alma
e me jogaram à carne fria
que não chora nem contempla.
Me arrancaram o susto
e no lugar puseram o relógio.


Plenitude – chuva por nuvem


          I
Tragar o mar depois morrer
açucarar-se. Contudo, chuva
ao largo, desperto
doce-água e sangria,
nuvem no incerto

fui chuva a pouco
não, não havia céu
tampouco campo
senti sede no açude do gado
eis-me agora, boi confinado

          II
Tragar o mar depois morrer
açucarar-se. Contudo, chuva
deveras ao incerto:
pólen fértil e fatídico,
nuvens no deserto

fui chuva a pouco
não, não havia céu
tampouco árvore
respirei sombra na semente
eis-me agora, flor indolente

          III
Tragar o mar depois morrer
açucarar-se. Contudo, chuva
deveras ao incerto:
céu cálido e salobro,
eis-me não liberto

água doce a jorrar
mas não, não morro
(tampouco viverei)
se não penetrar a terra e ser
plenitude, prefiro ser nuvem


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Delalves Costa (13 de dezembro, 1981 – Osório-RS) é escritor e poeta com 7 livros de poesia publicados: COISAS que faltam em mim (2005); O Menino dos Cataventos na Rua dos Passatempos (infanto-juvenil, 2006); “Considerações Pré-maturas & Outras ausências” (2008); “Josseu Solta-inventos e as Invenções do infantiletrando” (infanto-juvenil, 2008); “Fragmentos e iluminuras do discurso pré-maturo” (2013); “Inacabamento, a eterna gestação” (2016), “O Apanhador de Estrelas” (Becalete, 2018; 2ª edição Class, 2018) e “extemporâneo” (Coralina, 2019). Formado em Letras Licenciatura-Plena Português e Literatura Portuguesa, é mestrando em Mestrado em Educação Profissional na Universidade Estadual do Rio Grande do Sul/Uergs, Unidade Litoral Norte – Osório. Profissionalmente, professor de português, literatura e texto técnico na rede pública de ensino do Rio Grande do Sul. Pesquisador nas áreas de ensino, literatura e cultura locus-regionais do Litoral Norte do Rio Grande do Sul. Membro sócio fundador da Academia dos Escritores do Litoral Norte do Rio Grande do Sul (AELN/RS). Estudado pela crítica, o livro O Hermético na poesia de Delalves Costa (Eduardo Jablonski, Class, 2018) traça um panorama da sua poesia. Colabora com artigos e ensaios para revistas nacionais (Conhecimento Prático – Língua Portuguesa e Conhecimento Prático – Literatura) e com poesias em portais e revistas (Mallamargens, Ruído Manifesto, Literatura&fechadura, InComunidade).



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~Maya

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