segunda-feira, 29 de julho de 2019

Da pólvora, o cheiro queimado da inspiração

Hoje, 29.07, é aniversário dessa que vos fala. Para me auto-celebrar, trago aqui uma resenha extraordinária escrita pela crítica literária Mariana Belize, idealizadora do projeto Olho de Belize, sobre meu livro de poesia mais recente, "Poemas para Ler no Front". Espero que apreciem a resenha e o livro!




Poemas para ler no front difere substancialmente da outra obra poética de Maya Falks, Versos e outras insanidades. O tom melancólico de Versos foi substituído por uma frieza e uma mecanicidade, uma espécie de aceitação da tragédia que circunda o eu-lírico. Frieza como gélido é o olho daquele que encara a morte. Mecanicidade como um aspecto de escrita seca, que sulcando uma terra coberta de neve, tenta colher rastros de sobreviventes, mas só rasteja sobre os ossos dos que partiram.
Distante e ausente do front, o eu-lírico é, ao mesmo tempo, dissimulado, cínico pelas circunstâncias e, renegando o porvir, simplesmente decreta as perplexidades que somente chocam àqueles que não se traumatizaram, ainda, com o troar dos canhões.
“Da mão do oponente, meu corpo ao chão”. E não há consequência.
A guerra só dói no primeiro instante. Depois se torna uma ausência, um descolamento do eu-lírico de sua própria tentativa de denunciar o que vê e o que pressente. O eu-lírico segue o conselho de Walter Benjamin, poeticamente reescrevendo liricamente a história a contrapelo, utilizando os versos para focalizar os invisíveis: os soldados anônimos morrendo sem motivos, os moradores de rua, as mães que perdem seus filhos por conta de uma política de extermínio em massa… As mulheres assassinadas por aqueles que acreditam que elas são suas propriedades, creem ter sobre elas direitos de vida e morte.
Theodor Adorno afirmou ser impossível escrever poemas pós-Auschwitz. Mal sabia que poemas eram escritos EM Auschwitz. Não apenas isso, as pinturas levavam o sabor sutil mas poderoso da liberdade vermelha, como podemos ler e compreender melhor lendo a tese de doutorado de Ubiratan Machado, escrita em 2017 e que pode ser encontrada em domínio público para leitura acurada sobre essas descobertas. A prova de que a arte é, de alguma forma, um bálsamo…
Em Aos versos, poema que abre o livro, teremos uma noção ampla do que o eu-lírico trama para o leitor. Ao engolfar nossa leitura em sangue, a intenção não é chocar. Os poemas de Maya não são sensacionalistas. A questão é mais profunda: o transtorno no leitor é justamente a vertiginosa queda nos labirintos da leitura, ser afundado não numa escuridão, nem na insondável luz, mas cegados por uma poeira, sentimos na boca o gosto de um sangue que não sabemos nosso ou alheio.
Os dois.
Voltemos aos versos, porque há de ter um belo epitáfio em meu túmulo”
À espera de um belo epitáfio, o eu-lírico verte em versos a morte de qualquer esperança, assim como o recado à porta do inferno que Dante Alighieri construiu. Mas ao contrário de Dante, o eu-lírico de Poemas para ler no front, não alcançará o paraíso, nem é o que deseja. A morte é seu ponto final, como um caminho sem volta e sem continuação.
Também não é a angústia que o impele. Travado no presente, o eu-lírico é o esgotamento da fala e o verso que rompe o branco do papel com a escrita da retina traumatizada pelo que viu resgatada pela mão que escreve, pacientemente, o que o abismo grita. O registro num frame que se repete ad infinitum
Ele olhou para o abismo nos olhos do homem da guerra e viu que era só… vazio.
E o poema reflete a cavalgada, não das Valquírias, mas o caminhar ritmado do soldado em direção à morte.
Seu sentido é a enterrar-se na trincheira do esquecimento. Um soldado é só mais um.
Guerreiros perdidos no tempo, na sorte e na vida
Caminham sem eira nem beira, na marcha sofrida
Respondem às aves nortenhas, vis cintilantes que pairam no céu
Sonham com a glória perdida, a noiva roubada vestida de véu
Encontram o triste destino na vala sem nome e identificação
Exaustos, sem alma no corpo encontram a morte a caminho do chão.”
Encontrar a morte a caminho do chão é morrer aos poucos, em câmera lenta, como na espetacularização da guerra a que estamos submetidos, seja por Hollywood e seus milhões de filmes de mesmo enredo, seja na repetição mórbida das estratégias militares dos países viciados em guerra.
A guerra é poderosa porque se alimenta da indiferença dos que não são afetados por ela.
E as guerras particulares, os infernos anônimos, as barbáries cotidianas?
O exército dos indiferentes mantém-se fadados ao rivotril.
O destino, que assim queria, trazia às mães a dor da solidão
Olhavam pro céu em tristeza, com a certeza da impunidade
Tiravam a vida dos filhos, a vida dos trilhos, cruel realidade”
Quanto tempo escutaremos o eco de “Ó Senhor Deus dos desgraçados!” nem o pranto de Las Madres de la Plaza de Mayo? E aqui já não basta citar uma questão de época ou diminuir a carga emocional de Haviam os trovões. Os poemas de Maya constroem-se dramaticamente como visões de um pesadelo recorrente. É um livro que, sob a égide do trauma, pode ser utilizado como didática para compreender não pela razão, mas pelo corpo. Todas as guerras e seus traumas ali presentes, seja Aleppo, seja Complexo do Alemão, o eu-lírico a tudo observa e descrê de que está sobrevivendo.
Era manhã mas era noite, porque o clima era denso
Nos parques havia restos, árvore com um homem suspenso”
Em verdade vos digo: a cada verso, ele se esvai um pouco. Como se a tinta fosse seu próprio sangue. E é bem capaz de que seja.
A pena do corvo, o sangue da escrita… mas sem pieguices. Aqui o panorama cinzento destrói qualquer tentativa de emocionalismo barato. A lágrima é cortante, o verso é uma facada no desavisado que pensa encontrar um livro de pantomimas coloridas, de entretenimento fácil…
Ou um roteiro hollywoodiano.
Da pele, o rasgo que fere
A 7 palmos nada mais importa
Senão a vida perdida que chama
Senão a carne que é morta”
É um livro de carne, de sangue e fel.
Desaba, já sem dor e sem vida, naquele segundo findou sua estrada
O riso que antes se ouvia agora se convertia em mero descaso
Azar de tal vagabundo, perdido e imundo, vestido de trapos
Agora o homem queimado, sem futuro ou passado, ou história possível
Voltava ao seu posto de resto, de nada com nada, um homem invisível”
O eu-lírico ataca a memória do leitor, acuando nossas indiferenças diárias, nossa desmemória confortável, nosso conformismo execrável. Nossa condenação é dada pelos mortos que desprezamos a cada passo que damos para longe dos invisíveis. Os fantasmas nos agarram pelos pés.
Na guerra da vida
Sobrevivem os fortes
Não é o meu caso
Quis o acaso que eu caísse no chão”
E se a cada quarenta minutos uma mulher é espancada…
Abusa da minha anatomia, decepa minha autonomia
Me aprisiona em tua vontade, me mata só por vaidade
Virei estatística”
No poema, construído no imperativo, o eu-lírico realmente pede. A angústia da primeira pessoa do singular vinculada ao imperativo afirmativo é a ironia alarmante da maneira como a sociedade vê a morte das mulheres. Segundo muitos, elas pedem. Então o poema repete, um eu que pede, um eu que ordena, através da linguagem, seu próprio extermínio.
Daí o absurdo. Quem ordenaria a própria condenação à morte?
A cegueira é coletiva
Sorte sua em estar viva”
Sorte não. Sina.
Pensa na escuridão e no grande frio
Que reinam nesse vale, onde soam lamentos.”
Brecht, Ópera dos três vinténs
Pois bem, Maya pensou, sentiu e ouviu os lamentos, por isso pergunto: quem vai encarar a própria caveira nessa Danse Macabre, repetindo seu Memento Mori, ao folhear Poemas para ler no front?
Quem vai abraçar Kim Phuc, Maria da Penha, Marcos Vinícius da Silva, Marielle, Lula?
Quem?
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Poemas para ler no front
Maya Falks

Patuá: São Paulo, 2019
112 páginas
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Maya Falks nasceu Márcia, no dia mais frio de 1982 (no caso hoje, há 37 anos). Começou a criar histórias aos 3 anos, ditando as narrativas à mãe. Escreveu seu primeiro romance aos 7 anos, o segundo aos 10 e a primeira antologia poética aos 14, nenhum deles publicados. Atualmente Maya é publicitária, jornalista e autora dos livros "Depois de Tudo", "Versos e Outras Insanidades", "Histórias de Minha Morte" e "Poemas para ler no front".



~Mariana Belize
Olho de Belize

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