domingo, 28 de julho de 2019

Manuella dos pés pequenos

Manuella me procurou. Já não vive no Brasil, mas carrega pedaços dessa pátria massacrada no peito. Para minha sorte, como curadora deste projeto, escolheu o Bibliofilia para mostrar um tanto de seu trabalho.

Veio o livro todo. Divulgação avulsa ou resenha?
Concordamos em divulgação. Me parece que os não publicados andam um pouco envergonhados em mostrar a que vieram; já a pilha de livros pra resenhar - graças a Deus - só cresce.

Só digo de antemão que quero um dia o livro impresso pra rabiscar. Porque sim, porque descobri o prazer de tornar meu o livro alheio.

Por hora, deixo aqui a degustação.
Babemos por mais, porque quando o aperitivo apetece, a fome aumenta.

Conheçam Manuella Bezerra de Melo:

Faço questão que não chores sob meu pó
quando me for descansarei de ti não posso
esperar sua ida se estou a ser envenenada
como alface velha verduraria classe média
alta onde você flutua com seus tacos de madeira
em minha marcha cóvica não cabe sua tristeza
porque parou meu coração pra não ter mais
que ouvir você querendo que não fosse eu
querendo outra roupa cabelo voz andar diálogos
parei meus batimentos serpenteada do corticoide
que bebi pra acalmar um pulmão ofegante
que nunca alcançou tua expectativa de beleza
de modos de limpeza de sacramentos e sacerdócio
pleno caso de escravo que escraviza até desfalecer
permanentemente o coração que esperou amor
e pulsou a ultima vez ansioso por saber se afinal
elegera bem e adequadamente a aparência da
hora de nosso provisório adeus até o dia que
nos encontraremos como uma Soraia e Cláudia
qualquer a tentar a cura espiritual dessa patologia
que você chamou de amor

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Não passei fome e me compadeço
em meu privilégio não cortei cana
menina nem andei quilômetros a
pata ou boleia até a escola
Não sou tão rasa que não
se possa tirar proveito nem
tão sabida que se oriente imitar
falta-me chão de pedra e doem
demasiadamente pouco
os calos nos caminhos sob o
rubro céu que vivo; mas
sinto o peso abrupto de quem
vejo não eleito escolho sua trilha
arrasto consigo sua caçamba
Apunho da menina esse facão
e dele extraio pra ela seu trabalho
e sua doçura; não há poesia
sem dividir este peso

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Vomitar nesse papel não vai extrair do
meu estômago a acidez do vinho
pisoteado de madrugada mas para alcançar
as metáforas do Chico refestelei-me
na saliva de teus cônjuges e descobri que
lá não mora mais o amor de ninguém

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Esses e muitos outros poemas estão no livro "Pés Pequenos para tanto corpo", Editora Ututau, 2019.
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Nascida no Recife, Manuella é jornalista, escritora e investigadora. Trabalhou como repórter, produtora, redatora, foi de ativista à dona de cafeteria, mas largou tudo porque faz mais sentido largar que segurar. A única coisa que leva na sacola é o Rio Capibaribe. Escreve nas horas vagas e quando atenção permite espasmos, poemas, crônicas e contos infantis. Viveu no Brasil, na Argentina virou aldeã, hoje está em Portugal. Morou em Braga, atualmente reside em Guimarães, amanhã é outro dia. Está na antologia Pedaladas Poéticas (Aquarela Brasileira, 2017), publicou Desanônima (Autografia, 2017) e Existem Sonhos na Rua Amarela (Multifoco, 2018). Dedica-se a um mestrado de Teoria da Literatura e Literaturas Lusófonas da Universidade do Minho (Uminho).


~Maya

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