quarta-feira, 7 de agosto de 2019

Aos gatos que sobreviveram

Não faço a menor ideia de como conheci Rafaela, mas estava numa fase que ainda podia prestigiar nossos autores nacionais e comprei o seu "Enterrando Gatos". Nunca fui muito fã de ler contos e esse blog não estava nem em fase embrionária para eu me propor a ler o livro de Rafaela, mas comprei.

Terminei a leitura ontem e precisei desse prazo para assimilar, porque me impressionou sobremaneira a capacidade de Rafaela construir tramas e personagens com tamanha complexidade em um espaço tão pequeno.


De cara, um conto sobre uma menina cleptomaníaca que sente necessidade de destruir os objetos furtados. A destruição dos objetos é muito mais do que parte de um vício tão destrutivo como a cleptomania - já que além de doença, é também crime furtar objetos. Marina é fruto também de uma criação veladamente opressora, e o vício é uma válvula de escape.

Mas ele tem um preço. Não vemos Marina ser punida por seus furtos e pela destruição dos objetos. É sua consciência que a pune enquanto assiste outra pessoa ser violentamente acusada de seus próprios pecados. A culpa a massacra, ao mesmo tempo em que ela é somente fruto do que uma família relapsa e pouco amorosa causou nela.

A mesma relação aparece no segundo conto, Bolinha. Por sinal, meu favorito. As relações familiares com a criança protagonista do conto, nos dois casos, são mostradas de forma muito rápidas, e aí entra um mérito surpreendente na escrita de Rafaela: mesmo assim a gente compreende que essas crianças estão sendo negligenciadas e até mesmo desprezadas por essas famílias.

Murilo, do conto Bolinha, por exemplo, é considerando um menino-problema. Se encrenca na escola, já repetiu de ano, tira notas baixas e, por óbvio, é tratado como um problema pelos pais. A longo do conto, em que ele e sua irmã mais nova se aventuram pela cidade buscando pelo seu cachorro desaparecido, o que vemos é um menino, embora com jeito meio emburrado, extremamente responsável e cuidadoso.

O desfecho do conto, entretanto, me levou às lágrimas. Precisei fechar o livro e ficar aqueles 10 minutos de limbo da vida olhando pro teto e refletindo até sobre a origem do universo. Não vou dar spoiler aqui, mas todo o raciocínio que Murilo fez e a atitude que tomou é a prova contundente que ele não é enxergado pelos pais da forma como merece. E não, essas características de Murilo não são fruto da ficção de Rafaela, sobra exemplos no mundo de crianças como ele. Murilo é uma criança verdadeira e com um gigante coração, mas não é isso que a família enxerga dele e muito menos é dessa forma que ele é tratado.

As relações de invertem quando chegamos ao conto que dá nome ao livro. Ali vemos uma mãe completamente desesperada diante de um filho com traços muito fortes de psicopatia. Lembrei do livro "Precisamos falar sobre o Kevin", de Lionel Shriver - que posteriormente virou filme. É um conto que pode nos tocar em vários aspectos, tanto pela empatia com os animais que a criança mata (e jura inocência) quanto pela mãe que não faz a mais vaga ideia do que fazer com o filho até decidir abandona-lo em um parque de diversões.

Novamente não vou dar spoilers, mas o desfecho do conto, sob minha ótica, é desesperador exatamente por não ser um desfecho. Porque se aqueles personagens fossem reais, os problemas estariam muito longe de acabar, e poderiam facilmente se converter em uma grande tragédia, como citado o caso do Kevin.

Não vou entrar em detalhes dos demais contos para não fazer um texto longo demais, mas não posso deixar de pontuar a sensação de liberdade da protagonista de "A madrugada ainda tem cinco horas" eu se livrar - sem saber - de uma provável relação abusiva e da sensibilidade no conto "Poesia de rodoviária".

Por sinal, a crítica que posso fazer sem medo é justamente de o conto que fecha o livro ser apenas um conto. Ao contrário dos primeiros cujas relações familiares ficaram evidentes em poucas palavras, em "Poesia de rodoviária" senti falta de mais... caldo. O conto em si, como todos os outros, está lindamente escrito, não perde nada em nível e narrativa, mas Sarita é uma personagem com um "background" tão imenso, que merecia um romance, uma novela que seja. Se Rafaela se propusesse a levar Sarita para um romance, não tenho dúvidas de que seria imensamente bem sucedida.

Enterrando Gatos é um livro para ser degustado. Doce e amargo na medida certa. Uma gigante estreia para uma escritora.
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Enterrando Gatos
Rafaela Tavares Kawasaki

Patuá: São Paulo, 2019
145 páginas
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Rafaela Tavares Kawasaki é jornalista formada pelo Centro Universitário Toledo. Viveu 12 anos no Japão e foi finalista do Prêmio Santander Jovem Jornalista.

~Maya

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