sexta-feira, 2 de agosto de 2019

Voz da periferia

Lilia não é um nome muito comum. Quando conheci Lilia Guerra, a chamei no inbox na maior cara de pau pra contar que minha mãe também se chama Lilia. Dias depois minha mãe recebia um exemplar de Perifobia, livro de contos da xará paulistana de mamãe. Mamãe chorou.

Poucos meses depois, na minha inesquecível viagem à São Paulo para lançar meu último livro de poesia, uma moça com um sorriso estonteante se aproximou de mim e me deu um abraço que guardo com imenso carinho na memória. Como péssima fisionomista que sou, olhei pra ela meio desconfiada e falei "por favor, me diz que tu é a Lilia". Ela confirmou. Eu dei um gritinho.

Lilia Guerra é um pessoa absolutamente encantadora. Quando criei o blog, já planejava dar um post a ela só por isso, sem sequer ter lido ainda o livro. Bom, eu li.


Lilia sabe do que está falando. Perifobia é um retrato de várias facetas da periferia, da doméstica "parte da família" sem direito a nada ao chefe do tráfico cuja história de vida não poderia ter levado a destino diferente. Da diarista que chega ao seu limite com a cliente sem noção ao rapaz de cobra suas moedas para atender o telefone público da comunidade.

Para além disso, o nome do livro já é de um brilhantismo ímpar, a mistura das palavras "periferia" com "fobia" - que não significa somente medo, como muita gente falsamente atribui, mas aversão, ódio. É isso. No próprio livro temos o retrato da fobia de algumas classes com o povo que vem da periferia. O retrato de trabalhar até o corpo sucumbir e ainda ser chamado de "vagabundo" por quem foi criado a base de danoninho.

Em um dos contos, já mais para o final do livro, a personagem está tão envolvida com sua condição relegada à inferioridade de classe baixa que, em um ato de ousadia, compra um vestido caro e o esconde por vergonha de si mesma, como se a ela, mulher de periferia, não fosse dado o direito de usar um vestido de primavera em um raro dia de folga.

Embora o livro seja de contos, muitos deles são, na verdade, sequência de outros. Ao longo de suas 305 páginas, existem duas grandes histórias, dois grandes arcos narrativos que, em um dos contos, chegam a se cruzar (a gente só descobre isso em outro conto) e mais alguns contos avulsos, todos trazendo a realidade da periferia sem sensacionalismos, de forma diria até singela.

Confesso que em certos momento, quando a sequência pulava um conto, tinha vontade de pular também pra ver o que ia acontecer. Essa fragmentação inicialmente seria relatada aqui como uma crítica ao livro, mas na verdade esse efeito só foi possível pela qualidade narrativa de Lilia. Se a história não fosse bem contada, não daria vontade de continuar, certo?

Uma coisa que ficou muito clara pra mim, lendo Perifobia, é que Lilia consegue migrar de personagem a outro sem absolutamente nenhuma dificuldade, respeitando linguagem e personalidade deles. Não sei como foi o processo de criação da obra, mas essa mudança tão grande de linguagem conforme personagens demonstra no mínimo uma boa maturidade narrativa.

Lilia tem fôlego pra romancista. E um belo fôlego. Queria conhecer mais a fundo a história de Isabel e Tiago, por exemplo, coisa que o próprio formato curto do conto não permitiu.

Por fim, ainda quero saber por que Tiago matou Bigode.
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Perifobia
Lilia Guerra

Patuá: São Paulo, 2018
305 páginas
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Lilia Guerra é paulistana, lançou em 2014 o romance Amor Avenida e contribuiu com várias coletâneas, além de participar de oficinas e ateliês literários.


~Maya

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