Gosto das sutilezas. Gosto dos textos imagéticos que você sente vontade dialogar, literalmente, com o personagem. No conto é uma característica que aprecio muito exatamente porque o espaço é curto, se não vamos conhecer o personagem em toda a sua intimidade, que nosso contato com ele seja então intenso.
Foi mais ou menos isso que senti quando li esse texto enviado por ele. Ele tem mais tesouros escondidos que gostaria de mostrar pra vocês, mas é preciso respeitar criador e criatura, cada coisa ao seu tempo. No conto "A casca", que ele me enviou, a minha primeira leitura foi uma experiência, digamos, psicodélica. Enquanto acontecia o desfecho, eu via tudo colorido à minha volta como se não estivesse mais no meu corpo.
Li outra vez. Fui captando os elementos mais sutis do material aos poucos. E então deixei o conto morar em mim para que o quadro ficasse completo.
E que belo quadro.
Gosto das sutilezas. Gosto quando o conto te pega pelo pé e te arrasta sem que você perceba.
Conheçam o conto "A casca", de Carlos Figueiredo.
A Casca
O som da colher batendo contra o caneco de metal é torturante e ela parece hipnotizada
com esse ritmo – O tilintar de um sino corrompendo seus pensamentos inquietos.
“Por favor, para com isso... que coisa irritante!” Ela ignora o pedido e mantém o
movimento. Parece uma máquina, somente o pulso gira – as engrenagens movimentam
a mão que por sua vez move a colher com habilidade da prática diária.
“Dá pra parar? Você quer me enlouquecer? Que merda de barulho irritante.”
Cezarina arremessa com raiva a colher dentro da pia, tomba a cabeça de lado e olha para
o café que enfumaça no caneco de metal. Um sorriso irônico brota como suor no seu
rosto.
“Eu falei, falei mas você não deu ouvidos. Homem sabe de tudo, não é isso? Resolve
tudo que é qualidade de problema que aparece! Só. . . que agora não tem solução.” As
últimas palavras são ditas por ela em voz alta e num tom ameaçador.
“Não tem nada disso de homem faz tudo. . . resolve tudo! Não é nada disso mulher. Eu
tentei, arrisquei! E não deu! Parece que até você está contra mim, já não basta o resto
todo?” Fala ele com a calma e o tom de um religioso.
“Não estou contra você não, mas o que me perturba, o que não me deixa dormir, são as
crianças, vão ficar aonde? Com quem?” Ele não responde.
Cezarina coloca a frigideira em cima do fogão, risca o fósforo e acende o fogo.
Caminha em direção à geladeira e estanca o passo para olhar nos olhos de Hermes.
“Você, Hermes, parece que está tranquilo. Nós estamos sendo despejados, você sabe lá
o que é isso?” Ela pega um ovo na geladeira e fala sem olhar para trás: “Acho que você
ainda não se deu conta de que eu e as crianças não estaremos sozinhos, você vai morar
na rua também, Hermes!”
Cezarina, de costas para ele, quebra o ovo na borda da frigideira e um fio da clara
escorre entre seus dedos. Na sincronia da casca partindo, no rachar do cálcio, Hermes
sente uma forte dor no peito e o que escorre no canto de sua boca é uma saliva espessa.
Ela continua falando, mas ele não escuta nem a própria respiração. Uma forma
esbranquiçada pula banhada na gordura quente da panela, e o corpo dele apresenta
torções disformes. Seu coração parece explodir enquanto a gema ganha um amarelado
intenso. Cezarina, ainda de costas, fala. Fala sem saber que agora está tão só quanto
aquela casca de ovo partida, vazia, por sobre a pia.
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Carlos Figueiredo é escritor. Carioca, tem 50 anos, cinco filhos e é casado com a escritora Mell Renault. Com formação em cinema e fotografia, dirige atualmente uma produtora de book trailer. Nas artes plásticas pinta telas e ilustra livros.
~Maya
Maravilha de conto!
ResponderExcluirMuito obrigado, Ádlei, suas palavras me alegram muito.
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