segunda-feira, 2 de setembro de 2019

Fissurada

Antes do projeto Bibliofilia começar, Henriette Effenberger me enviou um de seus livros de contos, Linhas Tortas. Um livro singelo, gostoso de ler, quase um carinho ao leitor. Foi por causa dele, do livro "Por Cima do Mar" de Deborah Dornellas e "A depressão tem 7 andares e um elevador", de Isabela Sancho que eu efetivamente comecei a resenhar livros, e foi dessas três resenhas, publicadas em meu perfil, que veio a ideia de criar o Bibliofilia.

Por ocasião do meu aniversário, em julho, Henriette me enviou "Fissuras", um livro que se aprofunda na alma humana como se fosse capaz de enfiar as mãos diretamente no coração.



O conto que inaugura o livro, por exemplo, relata situações de extrema violência como quem pede a margarina no café da manhã, denunciando o fenômeno de naturalização da barbárie de forma escancarada, quase ingênua. Em "O demônio, quando quer, fica bonito" temos basicamente um diálogo onde a própria narradora ameniza as dores sofridas, chegando a se dizer grata que não prenderam seu agressor porque era um homem bom. Qualquer pessoa com bom senso achará isso absolutamente terrível, mas é a ideia do conto, mostrar que quem está preso no espiral de violência não necessariamente se percebe dessa forma, e por isso é tão difícil romper o ciclo. Um conto curto com uma profundidade surpreendente.

Em "Pai Nosso", conhecemos o padre que não resiste à tentação de visitar um decadente bordel recém aberto. Sem perder o fôlego, Henriette trabalha dois conflitos, primeiro a tentação, depois o reconhecimento da vocação. É um conto belo, humano, tocante. Temos dois seres humanos vulneráveis, cada uma à sua forma e em lados opostos da moral cristã - o padre e a puta. O trabalho realizado nesse conto é de uma sensibilidade ímpar.

"Três apitos" é forte. É uma daquelas críticas sociais que nos estapeiam as fuças. O homem, doente, quase levado à morte para que fosse produtivo à empresa até que fosse seu último segundo de vida. Uma vida integralmente dedicada a gerar lucro para outros enquanto troca sua existência inteira por alguns trocados. Vida real. Vida real. Um conto para nos lembrar que no mundo que pertence à poucos, a nossa própria vida é posse dos mesmos que carregam nos bolsos o fruto do nosso suor.

A dor do abandono se expõe em toda a sua forma mais abrangente em "Miados ao Léu". Dois abandonos, da dona do gato e do gato. A demora para encontrar o corpo da mulher demonstra que ninguém sentiu a falta dela, exceto o gato, que se viu em apuros para se alimentar. Quando descoberta, foi a vez do gato de não ser lembrado por ninguém. Dois seres que juntavam seus abandonos e não tiveram um final feliz. Quantos vivem essa realidade? Não raro vejo pessoas dizendo que temem morrer e só serem lembradas pelo fedor da putrefação porque ninguém efetivamente sentiu falta delas.

A visão do gato, que não compreende a imobilidade da dona, é, sem dúvida, uma forma contundente de pensar na solidão dessa mulher - o único ser que a percebe, nada pode fazer por ela.

Já "navegar é preciso", que vem na mesma linha da fragilidade humana diante da solidão, foi uma história que, concretamente, não compreendi por inteiro, não me foi clara, mas me foi evidente e gritante a depressão da miséria, a sensação do fracasso. Foram sentimentos muito forte despertados pelo conto, demonstrando que ele foi muito mais uma experiência sensorial do que efetivamente um texto a ser lido concretamente.

Henriette não perde o fôlego ao nos trazer a percepção da perda do controle sobre si, a sensação de que toda sua autonomia é tratada como uma forma de senilidade, ou a sutileza do abandono transformado em caridade. O segundo caso é o que acontece no conto "A velha da Sacola", suja sutileza me passou, inicialmente, despercebida. Enquanto anotava no rodapé que a história tinha mais potencial e me pareceu inacabada, me caiu a ficha e eu compreendi que a chave do conto está em uma frase no meio da história, cujo final explica nas entrelinhas. De conto que me pareceu inacabado para um dos mais tocantes que já li, bastaram alguns segundos. Uma leitura desatenta e eu teria perdido o tesouro escondido nessa preciosidade.

A versatilidade na passagem dos contos também é um aspecto notável. Entre minhas anotações variam observações como "poderia ter sido escrito por mim", "não entendi o começo mas chorei no fim", "bando de filhos da puta" e "eita, maluco". Sim, nesse nível.

"Uma fantasia para Sofia" foi um conto que me marcou de forma muito profunda porque já escrevi uma história com uma ideia parecida. Perceber essa ligação com uma autora que admiro tanto como Henriette me causou grande emoção, além, claro, de o conto der uma preciosidade. Lindo e triste, como defini no rodapé do livro.

Depois partimos para os contos gastronômicos, divertidíssimos em sua linguagem tão diferenciada, nunca havia visto nada parecido, a singeleza da decadência em um circo ou a comparação do crescimento da criança com o brotar de uma abóbora.

Por fim, e talvez o que achei mais brilhante nessa irretocável obra de Henriette, foi o conto "Fissuras". Até pela capa do livro e os contos marcados por pessoas com suas próprias cicatrizes, jamais teria associado a palavra "fissura", à abstinência de um viciado. O livro encerra com chave de ouro, nenhuma surpresa para uma obra de Henriette.
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Fissuras
Henriette Effenberger

Penalux: Guaratinguetá, 2018
120 páginas
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Henriette Effenberger Romancista, cronista, contista e poetisa, foi premiada em dezenas concursos literários nacionais, em prosa e poesia, assim como em literatura infantil. Publicou em 2008 o livro de contos Linhas Tortas, composto exclusivamente por contos premiados em concursos literários, o qual teve a apresentação do escritor Ignácio de Loyola Brandão, o livro infantil As aventuras do Superagora e em 2018 publicou o livro de contos Fissuras, com apresentação de Maria Valéria Rezende. Como memorialista publicou Sociedade Sinfônica de Bragança Paulista – 80 anos de acordes em harmonia (2011) e Sindicato do Comércio Varejista de Bragança Paulista – 70 anos (2013). É coautora do romance A Ilha dos Anjos ( 2002), Aeroclube de Bragança Paulista – uma trajetória nas asas do tempo ( 2006) e Liga do Pico, Futebol e Pinga ( 2012). Foi vencedora do Prêmio João de Barro de Literatura Infantil, com o texto Vida de sabiá – o que sabiam os sabiás além de assobiar, editado em janeiro de 2014 e do Concurso Literário Cidade de Manaus – Prêmio Alfredo Fernandes, com o conto infantil O menino que engoliu um furação ( outubro de 2016). no prelo, para ser editado ainda em 2019.
É sócia pioneira, fundadora, ex-presidente e atual Diretora de Finanças da Associação de Escritores de Bragança Paulista-ASES (entidade cultural, sem fins lucrativos,fundada em 1992). Participa ativamente de movimentos literários tanto nacionalmente (Mulherio das Letras) como no município de Bragança Paulista, onde atua especificamente. Trabalhou intensamente pela criação da Lei Municipal de Incentivo à Cultura, em Bragança Paulista e foi a primeira presidente do CMIC ( em 2005/2006). Atualmente ocupa a cadeira de Literatura/Livros do Conselho Municipal de Políticas Culturais de Bragança Paulista. Ministra palestras e oficinas literárias a alunos e professores de escolas públicas e particulares de Bragança Paulista.


~Maya 

2 comentários:

  1. Foi com prazer que li seus comentários sobre a obra, sua resenha descortina sem abrir a janela - percebe-se a luz como desejo de passar para o livro.

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