domingo, 8 de setembro de 2019

Há poesia no oculto

Valdir Cesar Conejo Junior, é o nome completo do poeta que trago hoje. Por causa da fila, só abri o material dele, enviado há 13 dias, efetivamente hoje. Valdir me enviou 7 poemas. Não posso postar os 7 pelo tamanho deles e pela plataforma a que lhe cabe.

Mas quero deixar um recado claro e explícito a Valdir, pelo tanto que li de seu trabalho: reúna mais alguns de seus poemas nesse nível e faça o favor ao mundo de enviar à apreciação de uma editora.

Ando distribuindo broncas a poetas por aí, que escondem pequenas jóias nos HD's de seus computadores enquanto a nossa literatura tenta se livrar do estigma de ser inferior só porque é nossa. Liberte teus versos, Valdir. Liberte-se, poeta.

Bons poetas não deveriam ficar escondidos.

Quero teu futuro livro para resenhar, Valdir.

Já que ainda não o temos, ficamos com uma seleção de poemas. Não os melhores, porque nenhum dos 7 pode ser posto como inferior aos demais. Nesse caso, meu caro, a curadoria foi obrigatoriamente aleatória.

A descoberta do ódio através cegueira

"o mundo pitoresco e caridoso dos ceguinhos acabou, agora é o reino duro, cruel e implacável dos cegos".
(José Saramago)

I

Demorei pra descobrir ódio escondido
nos alicerces da selfie
e ainda é turva imagem fora da rede social. 
Dizem que a cegueira acostuma gente.

Deve ter começado na primeira postagem,
não sei. Será que foi o vício numa espécie de reinado
que impediu minha visão além da tela?
Foi a rede me cegou, ou usei a rede como desculpa?

II

A violência travestida faz seu trottoir
e como a morfina ilude a mente enquanto alastra o câncer,
minhas imagens aplaudidas na rede levantaram
crença que nada existia além do meu reino:

minha mesa farta de likes regulamentava inexistência da fome,
o riso estampado na face da minha esposa esbanjava
alegria recatada e do lar
e meus stories com Cristo na igreja sacramentavam boa intenção.

Na rede não se enxergava o outro, sua necessidade, suas dores
e pouco importava que se fazia do lado de fora,

até que senti no sal do seu corpo,
nessa cama semi-usada,
nessa imagem que não será postada,
após pagar pelo serviço cujo espelho no teto é única testemunha,

dor de quem só se fez Geni pra alimentar os filhos.

E quantas Genis, iguais a ti, existem fora da minha rede,
noutros reinos, com outros likes e outros seguidores de padrão?
Será minha rede anti-social?

III

Quantas Genis vivem mudas nesse mundo dominado por cegos?

Quantas já calaram ante o falo?
Quantas viram grito da fome matar seus filhos?
Quantas vendaram imagem de Cristo na santa ceia?
Quantas, como ti, devem ter dormido torcendo
pra acordar sem olhos?
Quantas me reconheceriam além da selfie e da máscara
que me cega esconde meu ódio?

Quando deixei de notá-las?

IV

Quando a rede social passou orientar o que vejo?
Quando deixei de notar o outro?
Quando passei odiá-lo?

Foi o ódio que me cegou, ou usei a cegueira como desculpa?

A resposta só veio quando beijei seus olhos
e sua lágrima, Geni, indagou em braile
com muro dos meus lábios:

acorda, se não pode enxergar, escuta, mas escuta antes de escrever,
de postar, de falar,
escuta além do ouvido,
que palavra maldita é mãe da cegueira,
já reparou no que tem escrito?
porque você não soa quando escreve?
porque você não sua quando ama?
seja homem! não é assim que vocês dizem?
agora, vai culpar a rede pela odiosa doença?
oras, mas quem, além do homem, já teria
ódio suficiente
pra arrancar os próprios olhos?

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Crime de guerra

“Tudo é permitido a quem serve a uma causa santa”.
Eça de Queiroz

Visto a farda pra batalha de mais um domingo e mesmo não sendo capaz
de defender com fé as armas, os motivos, as doenças carregadas
pelo meu exército, confesso:
prima, não peço perdão pra crimes de guerra.

O corpo sacro que dissolve pecados da semana em minha boca,
não me absolve.
Profanei céus batizando nosso refúgio de paraíso.

Talvez o vinho amenize coágulos de culpa descendo a garganta seca.
Tateio anatomia da consciência e não consigo mensurar
a ferida do nosso crime,
queimaduras de 3° não deviam causar incesto pra mandar alguém à fogueira.

Não culpo a barreira de ouro no teu dedo, que deveria obstruir entrada
de outro soldado em chamas no teu peito,
nem culpo, prima, tua doença Basílica, teu descuido de ir pra guerra
sem tomar vacina contra aquele vírus de madame francesa,

neste país de epidemias coloniais era de se esperar que o exército da língua
portuguesa fizesse a festa
no teu corpo desacostumado a outras salivas latinas,
mas hoje é sabido que não se morre disso.

A indústria farmacêutico-literária tem mantido, por décadas, a sanidade
dos sobreviventes de guerra com livros de auto-ajuda.

Graças a eles teu sangue contaminado não me preocupa, mas outra doença
luso-literária tem tirado meu sono
e quem há de negar que essa me é superior,
se minhas narinas ardem ao odor do bendito sangue que bebo,
minhas mãos queimam ao tocar o sagrado corpo com o qual alimento exército
e meu pescoço coça aos domingos de farda celibática?

Uma vez que se experimenta o combate, corpo a corpo, prima, imagens da ação
nunca mais saem da cabeça e mesmo sabendo que,
ainda que eu mergulhe no vale das tentações, tudo posso pois
minha causa é escolhida por Deus,
sei que é impossível voltar são do campo de batalha.

Dr. Queiroz me diagnosticou com Mal de Padre Amaro e, sabendo que não há
cura pra tal doença terminal, espero
que nosso crime de guerra não tenha sobreviventes.
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Doador de órgãos

Foi o cheiro de meritocracia exalando
do teu discurso swing trade
que transformou meu amor à vida.
O desprezo ao outro
que pingou da tua saliva acionista fez
com que eu decidisse
doar os órgãos,
deixar
aos que precisam melhor de mim.
Eu mesmo pretendo arrancar
meus olhos
pra alimentar os cães,
cozinhar meus ruins pra que os gatos
de rua não morram de infecção
alimentar. Quero que meu fígado duro
qual carvalho seja curtido
em vinagre
e servido aos ébrios. Que meu coração
mal passado e ainda quente
aliemente
mendigos agasalhados
com gráficos da bolsa nos jornais.
Por fim, que minha língua crua
sirva de entrada aos vermes que vão
devorar
o resto de mim.
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Valdir César Conejo Júnior, mora em São José do Rio Preto - SP. Cursou ciências sociais, mas nunca deu aulas, prefere o outro lado da sala. É desenhista e poeta, possui poemas públicados no “livro da tribo”, “revista subversa: literatura luso-brasileira” e no livro “Oito Poetas, sete rupturas” pela editora Patuá.


~Maya

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