terça-feira, 10 de setembro de 2019

Vai ser assim

Fui apresentada à Leonardo Tonus pela amiga e pesquisadora Regina Dalcastagnè, e foi um presente na minha vida. Não apenas porque Leonardo é um cara incrível, mas porque ele é um grande apaixonado por literatura (é sempre bom encontrar nossos pares) e, depois de ter o livro dele em mãos, descobri que ele é um poeta maravilhoso.

Li "Agora vai ser assim" num fôlego. O livro começa surpreendendo quando encontramos o título dele e do autor no verso, na quarta capa, enquanto na capa temos o trecho de um poema, nos convidando pra entrar. No convite Leonardo nos prepara para o baque. Ou pelo menos pra um pouquinho dele.



Talvez esse seja um dos meus maiores desafios como resenhista, porque esse livro não é algo que possa ser efetivamente descrito. Ele é sentido. Ele foi escrito com as vísceras.



Sei que não é de bom tom ou sequer elegante que um resenhista cite a si mesmo quando resenha trabalho alheio, mas encontrei nas entranhas do livro dois diálogos fascinantes com dois poemas de meu livro "Poemas para ler no Front". O primeiro, no poema "Um corpo sobre a areia", onde grafei tanto quanto foi possível, como a beleza dos versos "Eu perdi a voz / ao sair". Quando encontrei "à mulher que implorou / para que a criança não morresse / sobre a areia" ou "Não há poesia no corpo de uma criança afogada" me estapeou as fuças meu próprio poema "26", ali ele, composto de poucos versos, se encaixaria à perfeição pela homenagem ao garotinho sírio, morto em litoral europeu, com seu pequeno corpo à espera do banquete dos urubus. O poema de Leonardo, que será declamado em vídeo, me levou às lágrimas.

A segunda vez que tive vontade de contatar Leonardo pra conversar sobre nossos poemas que dialogam foi em "Conchas", onde, pelo final do poema, ele nos diz "Do silêncio / silenciado / resta apenas / o terror / das pedras de Alepo. / Você nunca ouviu o silêncio das pedras de Alepo". Desta vez, vejo que "Conchas" se encaixaria à perfeição como a oitava parte do meu poema "Aleppo".

Eu e Leonardo nunca nos vimos pessoalmente. Nunca dialogamos de fato, trocamos poucas palavras e compartilhamos de claras paixões. E nossas obras se sintonizam sem que houvesse qualquer contato prévio entre nós para que o diálogo acontecesse. Não que esses diálogos não planejados sejam raros, especialmente quando Leonardo tem uma veia poética semelhante à minha, com força, vinda do âmago, mas foi a primeira vez que flagrei de forma tão escancarada e me emocionou que esse diálogo tenha acontecido entre Leonardo e eu. É uma honra para uma eterna aprendiz como eu.

Claro que a grandeza da obra de Leonardo não se resume aos poemas citados. Rabisquei de tal forma o livro dele que talvez o deixaria envergonhado, ou orgulhoso do efeito que seu livro me causou. Muitos de seus poemas deixarei para gravar em vídeo porque merecem mais do que simples menções - todos eles merecem mais, mas se eu declamar o livro inteiro, vocês não o comprarão, e eu quero que todos vocês tenham esse livro em casa.

"Agora vai ser assim" é um grito poético. Leonardo Não tem medo de dizer o que precisa ser dito e o faz com uma força capaz de descongelar corações.

Em "Ich denke", Leonardo nos diz "Minha geração foi a geração do medo. / O medo insidioso penetrando todas as esferas do cotidiano.", achei interessante pensar que o livro que finalizei antes desse, "Jogo de Cena", tivesse o medo como a veia que interligava cada órgão pulsante daquele organismo livro, e venho estudando o medo como uma das maiores ferramentas de manipulação para uso em minhas próprias produções (trabalhar o fenômeno, não causar medo nos leitores, se acalmem), e Leonardo nos traz, nesse poema, as diversas formas de medo que sua geração viveu.

"Desconhecemos o valor dos silêncios" diz ele, lembrando-me com exatidão daquela quarta-feira, em 2016, quando diálogos distorcidos e usados de forma sensacionalista no programa de maior audiência da televisão aberta brasileira causaram uma onda de barulhos, entre panelas e palavrões, pelos bairros mais nobre de todo o país, "das sacadas de nossas varandas" confirma que o fazer poético encontrou morada em seu lugar na história.

"Penso no silêncio obsceno da humanidade / a que pertenço." e então me lembro do medo. Hoje há quem silencie por medo da horda de zumbis pré-programados ao ataque - um coração sensível e poético não suporta tamanha onda de ódio. Mas há também os que silenciam por conivência, conveniência, preguiça ou pela simples falta de vergonha na cara.

Vou indo de frente pra trás, de trás pra frente porque não há de se exigir ordem de um livro de poemas, encontro "Urgências" sem esquecer que lá pra trás (ou pra frente, depende o ponto de vista) ainda tem tanto a comentar. Me chama a atenção que, além de nos jogar na cara que tudo o que menos importa é tudo o que se torna sempre mais urgente, Leonardo traz pela segunda vez o grito das mulheres.

Me acalenta o coração. Um homem que escuta o grito das mulheres. Mais do que isso, um homem que expõe sem meias palavras os horrores vividos por elas nos países em guerra, nos países em paz, nos países onde existam mulheres a serem violentadas e homens dispostos a fazê-lo.

Em "Partir", comento ao rodapé da página: a morte não acontece na falência do corpo, mas no vazio da alma. Enquanto ele divide folha com "Vaga-lume", com o romantismo torto dos que sabem que são usados pelos outros.

Fui outra vez às profundezas de mim, da minha tristeza, com "Ouriço": "Minha identidade é profunda / Sou o ralo do mundo / Um buraco / Um homem-buraco / que nada há de preencher"

Ah, Leonardo, falaste à minha alma.

Serei incompetente como resenhista em não falar sobre o poema que fecha o livro. Não o farei mesmo. Lerei, tão logo me for possível, mais um desse livro que ganhará sua própria declamação.

Agora vai ser assim, então, Leonardo? Que assim seja.
Sua poesia abraçou minha alma.
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Agora vai ser assim
Leonardo Tonus

Editora Nós: São Paulo, 2018
86 páginas
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Leonardo Tonus é Maître de Conférences habilité à diriger des recherches na Sorbonne Université (França). Membro do conselho editorial e do comitê de redação de diversas revistas internacionais, atua nas áreas de literatura brasileira contemporânea, teoria literária e literatura comparada, com pesquisas sobre imigração. Em 2015, foi curador da parte francesa do Salão do Livro de Paris e, em 2016, da exposição Oswald de Andrade: passeur anthropophage no Centre Georges Pompidou (França). Em 2014, recebeu a condecoração de “Chevalier des Palmes Académiques” pelo Ministério de Educação francês e, em 2015, a de “Chevalier des Arts et des Lettres” pelo Ministério da Cultura francês. Publicou vários artigos sobre autores brasileiros contemporâneos e coordenou, entre outros, a publicação dos ensaios inéditos do escritor brasileiro Samuel Rawet (Samuel Rawet: ensaios reunidos. Civilização Brasileira, 2008) e as antologias La Littérature brésilienne contemporaine – spécial Salon du Livre de Paris 2015 (Revista Pessoa, 2015), Olhar Paris (Editora Nós, 2016) e Escrever Berlim (Editora Nós, 2017).

~Maya

2 comentários:

Finaleira

Esse é o último post desse blog. CALMA, NÃO PRECISA DESMAIAR! Não, o Bibliofilia não acabou! O causo é que no finalzinho de outubro, mais...