sábado, 31 de agosto de 2019

Saindo do armário

Crow é das antigas no meu face e, como a maioria, eu não sabia que Crow é poeta. Diz ela mesma que se assumir lésbica foi mais fácil do que se assumir escritora, vítima de um problema levantado na reportagem do post anterior: a ideia de que ser poeta é algo como um clube exclusivíssimo onde somente uns poucos letrados VIP conseguem adentrar.

Ela me mandou seu material poético sem pretensão de publicar aqui, queria saber minha opinião. Eu sou uma reles mortal. Uma reles mortal que lê muito, mas ainda assim uma reles mortal, quem sou eu para julgar o trabalho alheio?

Crow escreve há anos. Crow merece ser lida, como merecemos todos conhecer o trabalho dela. E aqui vos apresento alguns dos poemas que ela me mandou. Degustem.

Madrugada

Os saltos espalhados

O pulo
Não é do gato

É de êxtase
De uma alma que cria
Renega
Respira
E pouco se alivia

É a lebre em libido
Disparada em diáspora

Tonta ou perdida
Em tragédia assistida

Danço, ouço música

Me acalmo em água
Hipnose ou concentração

Tudo depende do estado de espírito
Desta minha euforia sofrida
Que pede alívio na escrita
No beijo e na escuridão

Hoje me vi apaixonada
Apressada e encantada

Hoje agradeço aos amigos
Que aquecem o tão esquecido sentido
Do amar e radiar luz
Brilho de uma partícula de Sol há muito esquecida

Que muitas vezes se fez substituída
Subestimando tanto a potência quanto a paixão

Com a qual leve, livra-se

E lê
Nos detalhes, a menina doce
Do sorriso maroto
E de alma imprudente
Que quer colo

E mordiscos

De uma apaixonada

E juntas
Se perdem

Na dança em praça pública
No choque de escrituras

Nos papéis finos
E ainda assim tão tão tão cruéis

Vermelho e vermelhidão
Hoje dançam valsa
Unindo o coração

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Entre rodas de cura, amor e perdão

Gritam conselhos, grita a sofreguidão

Trombam-se espíritos, desígnios e amoados percursos
Com cautela, com vitalidade
Com vontade, com esganação de si

Numa constante expressão
Do espremer

E expressa-se aqui
O eu, o si

Feito fumaça que tarda, que flutua em lentidão
Que confunde, inspira, aspira as devoções

Feito dança e magia, feito voz de perdão

Feito encontro com Deus, com o divino de si

Estou eu aqui, conspirada em mim
Condenada, abençoada, amordaçada ou somente atordoada
Escritora de mim

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Aquarelada

Descabida e refratada
Em luz, sombra

Pétalas de brisa
Que amacia

Toca a face
Em cheiro doce

Diana

Primeira da primavera
Já com um fardo muito espesso
Beleza e leveza
Em olhos que vão da ingenuidade à malícia
Como você me leva para a pista
Em rodopios

Um sussurro fácil e carinho bobo

Desvelando
Os talentos, os dotes
Teu atributo é o bote

De cobra
Que enforca, esmaga
Açoita para tirar o ar

Me deixa sem respirar

E eu flutuo
E voo
E fluo
E soo

Som
Engulido seco
Rasgante e ardente

Como bebida que desinibe
Resgata a coragem que nunca tivemos
Entre tantos e tantos covardes

E na penumbra
No abraço
Na dança e no encanto

No enlaço da presa
Na armadilha de seu predador
Viramos só
Solidão
Som

Carne na multidão

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Crow Luine é aquariana, visionária, sonhadora, uma tarada por gente, por grupos, por dinâmicas sociais e que também sofre dos dilemas e males que acometem a humanidade contemporânea. Ficou órfã muito cedo, de toda a sua família e frequentemente escreve sobre as dores, aprendizados, saudade e honra que foi viver esta história. Também descobriu, após a morte dos pais, que era adotada e não tem informação nenhuma sobre seus progenitores. Uma completa novela que não foi escrita por ela mas que se permite viver, protagonizar e dirigir, da maneira que pode.

É lésbica, sempre foi gorda, gamer e paranoica. Cria dois gatinhos e uma cachorra. Na carreira, seu coração sempre esteve na educação e na empatia. Formada em Pedagogia, pós-graduada em Psicodrama e também Hipnoterapia; hoje é terapeuta e educadora na Casa Intuição, espaço com a intenção de resgatar o verdadeiro sentir, genuíno e primitivo de cada um.

Sempre foi assumida em relação à sua sexualidade, que aflorou lá pelos seus 13 anos. Mas foi somente em 2019 que se assumiu também escritora e poeta, pelo menos para o mundo. Antes tinha vergonha e achava pretensioso se intitular como algo tão nobre. Ainda não tem nada publicado por editoras, mas quando tem paciência se esforça para sair do analfabetismo digital e posta suas trovoadas, poemas e textos nas redes sociais.  

~Maya

quarta-feira, 28 de agosto de 2019

O retrato da poesia brasileira contemporânea


            O mais interessante em se nomear uma reportagem como o retrato da poesia brasileira contemporânea é que se trata de um feito impossível. Um retrato, por definição, é uma imagem estática, o que definitivamente não combina, sob nenhuma hipótese, com uma arte em constante movimento.
            Talvez seja exatamente esse movimento da poesia, perceptível à menor pesquisa pelas redes e saraus espalhados pelo Brasil, que causou tanta polêmica a matéria publicada pela Folha de São Paulo, em abril deste ano (2019) sob assinatura da pesquisadora Mariella Masagão.
            Há quem diga que houve má interpretação de seu texto, mas a verdade é que, ao iniciar com a provocação de que ficou mais difícil escrever poesia em português depois de Fernando Pessoa, a pesquisadora me deixou com a famosa pulga atrás da orelha. Será? Não pela dificuldade em si porque escrever poesia não é uma tarefa fácil, nem depois, nem antes de Fernando Pessoa.
            Poesia é o gênero que mais mexe com paixões. Em minha pesquisa para a composição dessa reportagem, o editor Marcelo Nocelli, da Editora Reformatório trouxe exatamente esse ponto de que existe uma falsa ideia da facilidade de se escrever um poema. Parece simples escolher um monte de palavras bonitas e enfileirar em forma de versos, rimados ou não. Mas não é bem assim, conforme destaca Marcelo, “o poeta deve atingir múltiplos significados, atingindo uma subjetividade que quanto menos dimensionada, melhor, de forma com que a palavra se desvincule de seus significados habituais e alcance diferentes sentidos, sempre repleta de sensorialidade, sentimentalidade, de forma a provocar, surpreender, impactar o leitor, e tudo isso deve ser feito ainda da forma mais bela possível”.
Marcelo Nocelli
Editora Reformatório
            Parece tudo, menos fácil. Ponto para a pesquisadora? Não, porque não foi isso que ela quis dizer. Por mais que pareça que a intenção da reportagem seja reacender uma polêmica superada, o fato é que o artigo dela foi um grande motivador pra mim, poeta ofendida e agora ostentando feliz meu recém-conquistado diploma de jornalista: será que a pesquisadora foi longe o bastante para poder afirmar, através de suas amostragem, tudo o que foi dito no artigo.
            A resposta outra vez é não. E não porque eu tenha me proposto a uma pesquisa acadêmica formal, com anos de leituras e centenas de entrevistas, mas porque estreei um canal (este, por sinal) onde me deparei com poemas de todos os tipos, e me propus a conversar com editores e poetas dos mais variados. A pesquisa ainda foi falha, meu escopo não foi de viés científico, mas jornalístico, porém, foi bem-sucedida o bastante para acalmar a pulga atrás da orelha que vinha cultivando desde abril.
            A poesia contemporânea brasileira é tão diversa que sequer tentar colocar toda ela em uma caixinha com um ou dois rótulos soa como um pecado, uma blasfêmia literária. Não é possível. Nas próprias entrevistas o que não faltou foi variação temática do que está circulando em matéria de poesia pelo nosso território. E isso tendo como base não apenas um grupo muito pequeno de editoras, mas igualmente um grupo limitado de poetas, embora abranjam uma boa fatia do território nacional.
              E é incrivelmente pouco.
            Mas a poesia vem, inegavelmente, ganhando espaço. O Prêmio Jabuti, por exemplo, um dos prêmios de maior prestígio do país, agraciou um livro de poesia em sua última edição. “À Cidade”, de Maílson Furtado, não somente é um livro de poesia como é um livro de poesia independente. Não carrega na capa nenhum selo que poderia lhe conferir qualquer benefício na decisão do júri.
 
Maílson Furtado
          
Maílson, cujo prêmio demonstrou que a poesia está viva, declarou otimismo com o futuro do gênero no Brasil, segundo ele, “o fortalecimento de selos editoriais que publicam com grande qualidade (...) abrem um novo campo de acesso a inúmeros artistas com trabalho no prelo”.
            Exatamente por reconhecer a amplitude do tema – e aspecto que mais me motivou à reportagem – é que restringi a reportagem às editoras independentes que investem fortemente em poesia e poetas independentes que investem a si mesmos. E na semelhança de respostas para uma questão específica foi que entendi que a poesia está não apenas renascendo, como tendo um crescimento forte e avassalador.
            Entre poetas, perguntei porque escrever poesia se as pesquisas dizem que o brasileiro não lê. Foi unânime: porque escrever poesia é uma forma de sobrevivência, é respirar, é resistir. Entre editoras, porque continuar publicando poesias se as pesquisas dizem que o brasileiro não lê. Outra unanimidade: pela crença do poder de transformação da poesia.
            Embora eu tenha optado por iniciar a reportagem com a provocação sobre a amplitude da poesia em relação a um artigo publicado em um espaço com muito mais circulação do que eu conseguirei alcançar com esse texto, a pergunta inicial do meu questionário base para as entrevistas começava exatamente com essa afirmação: o brasileiro não lê. Isso nem de longe é uma verdade. Uma reportagem da Revista Fórum do ano de 2017 já demonstrava um crescimento importante no número de leitores formais – por formal, me refiro ao leitor de livros, porque a palavra “leitor” é imensamente mais abrangente do que isso. Mais do que isso, apontava um aumento expressivo no número de pessoas que têm o desejo de ler ou de ler mais do que costumam.
Andri Carvão
            O poeta Andri Carvão apontou o audiovisual como o primeiro responsável pelo perecimento temporário da poesia, uma vez que as produções não apenas passaram a ocupar mais o tempo livre das pessoas como quando aliadas à literatura, dificilmente se baseiam em poesias. Andri não está errado, existem pesquisas que comprovam isso, embora sempre com dados conflitantes, uma vez que o surgimento do entretenimento de massa atingiu também o público analfabeto, que não era público leitor por motivos óbvios. Entretanto, o próprio Andri comenta que a poesia é oriunda, predominantemente, da tradição oral e foi se elitizando com o surgimento dos tipos móveis, que permitiram produção impressa em larga escala. A partir daí, a poesia se tornou socialmente vista como “propriedade” dos poucos privilegiados que tinham acesso à educação.
            Em pesquisa que realizei para um livro-reportagem em que abarcava o período Romântico, esses dados se confirmam, tendo a poesia um status muito elevado, o que permitiu inclusive que poetas de classes mais pobres pudessem se relacionar com os nobres através da aceitação de suas obras. Na contramão, poetas que falavam ao povo e resgatavam a tradição oral não eram bem vistos pela classe intelectual.
           Falar ao povo não é bem visto pelos aristocratas de qualquer época. Não à toa as universidades públicas viraram alvo de rancor das elites quando os herdeiros das famílias ricas passaram a dividir a sala de aula com os filhos de suas empregadas. A poesia precisou passar por uma transformação nesse sentido, ser reinventada, redescoberta.
            Isso me remete à minha adolescência, em que me assumir poeta era quase como dizer que eu era superior aos demais. A ideia aristocrática, de posse da poesia exclusiva para nobres e intelectuais de alta estirpe afastou muita gente deste gênero por muitos anos. Escrever ou ler poesia se tornou coisa de gente “esnobe”, quando na verdade cada vez mais integrava as ferramentas literárias de quem estava à margem. Os poetas marginais.
            O surgimento de editoras que investem em poesia por acreditar no poder dela é relativamente novo e talvez até desconhecido de muitos poetas, que acabam optando pela independência. Não é o caso de todos, entre os entrevistados têm os poetas que optaram pela independência e os que ainda buscam a oportunidade de assinar um contrato.
Nay de Lucena
            A poeta Ingrid Carrafa, por exemplo, teve a experiência de publicação por editora e acabou escolhendo o modelo independente, uma necessidade que ela sentiu de criar e cuidar de seu material à sua maneira. O cuidado particular também é a motivação de Nay de Lucena, que considera a produção independente mais charmosa e encantadora. Angel Cabeza, hoje em catálogo de editora, iniciou sua carreira de forma independente pela dificuldade de conseguir um contrato como autor desconhecido, assim como Maílson, que viu na independência seu único caminho, e Emely Polli, que reconhece as dificuldades mas não se arrepende das escolhas feitas. O mesmo não aconteceu com Andri Carvão, que se endividou para garantir sua primeira publicação, o que lhe rendeu uma experiência importante; o poeta acredita na importância de se construir um nome antes de partir com pressa a uma publicação.
Emely Polli
            Outros caminhos podem ser trilhados pelos autores, a seu gosto ou conforme as coisas acontecem, como o caso de Delalves Costa, que foi publicando aos poucos, em jornais, coletâneas até que viesse descompromissadamente a primeira edição própria. Hoje amparado por um selo editorial, Delalves trilhou o caminho do contato direto com o leitor, da famosa “cara de pau”, “insistentemente oferecendo meu trabalho, fui a muitas escolas e feiras de livros, nas quais nunca saí sem pelo menos vender uns cinco exemplares”.
            E ele fala sério; está sempre atento às oportunidades. Tão logo anunciei nas redes a ideia do projeto Bibliofilia Cotidiana, ele imediatamente fez contato comigo para entender como funcionaria e foi o primeiro autor a me enviar material para divulgação.
            A se basear pela experiência dos próprios autores independentes, fica claro que a leitura existe, o público existe, o que é fundamental é encontra-lo. É uma defesa contundente de Nathan Magalhães, editor responsável pela Editora Moinhos. Nathan inicia enfaticamente sobre a desimportância dos números, das pesquisas que apontam os baixos hábitos de leitura do brasileiro, simplesmente porque os números nunca vêm acompanhados de um cenário concreto, dos nichos, dos compartilhamentos entre autores e
Nathan Magalhães
Editora Moinhos
leitores, “poesia vende, é achar seu público, é criar público”, defende o editor, aspecto nos quais concordam Tonho França e Wilson Gorj, da Editora Penalux. Inclusive, o comprometimento do autor com o livro e com seu público leitor é um dos fatores mais valorizados pela Moinhos, por exemplo. Relata Nathan: “o que interfere é o que os autores fazem pelo livro. Estamos num tempo em que é necessário, sim, fazer algo”. Outro ponto em comum levantado pelos sócios da Penalux, quando questionados se o gênero do autor interfere nas vendas: “não vemos interferência nas vendas motivadas por gênero, mas sim por posturas. Poetas mais engajados, mais participantes das redes sociais, mais atuantes em saraus e eventos literários tendem a formar um público-leitor maior”.   
 
Tonho França e Wilson Gorj
Editora Penalux
Junto à poeta Isabela Sancho
          
O mesmo sentimento demonstra Larissa Mundin, editora responsável pela Nega Lilu, voltada à valorização daqueles que foram historicamente excluídos pelo mercado literário (embora frise que as portas estão abertas a todos). Larissa declara que “não me intimidam as pesquisas em relação ao leitor. Ações de uma política pública séria e continuada conseguiriam transformar esta realidade de baixa leitura em 20 anos”. A declaração de Larissa faz coro com Eduardo Lacerda, da Editora Patuá, quando aponta que a precarização do acesso à leitura é um projeto público que já perdura mais de 500 anos.
Larissa Mundim
Editora Nega Lilu
            Trocando em miúdos, existem poucos projetos efetivos de incentivo à leitura no país, e sempre com severas dificuldades orçamentárias. Eduardo destaca: “acho muito perigoso dizer que o brasileiro não lê, parece que é algo de nossa natureza, mas não é, não podemos naturalizar isso (...) formar público leitor nunca foi um objetivo no Brasil, pelo contrário. O livro, assim como a educação, a cultura, as outras artes (...) nunca foi uma prioridade, isso é histórico, começa na nossa colonização, passa por 500 anos de história, uma história de descaso com o livro e descaso com o ser humano”. Eduardo e Larissa apontam uma ideia em comum: a desvalorização da cultura é um projeto, e encontram eco não apenas entre outros editores e artistas, mas também entre educadores e o próprio público que insiste na valorização do trabalho realizado pela resistência poética.
            “De forma objetiva, publica-se poesia para se espalhar a esperança e a liberdade, portanto”, pontua Larissa. É exatamente pela noção de que poesia tem o potencial de encontrar no mercado o mesmo espaço de outros gêneros mais valorizados em termos de vendas que
Wallison Gontijo
Editora Impressões de Minas
Wallison Gontijo, da Editora Impressões de Minas não faz qualquer diferenciação, tendo como critério único a qualidade do texto, e não pesquisas que digam o que aparentemente vende mais ou menos. Segundo ele, o mercado está enfrentando dificuldades como um todo, exatamente pelos problemas apontados por Eduardo Lacerda e por Larissa Mundin, não é uma exclusividade da poesia.
            Entretanto, Eduardo Lacerda aponta para a intensa produção poética espalhada pelas redes sociais, mesmo que no mais do que contemporâneo formato do meme – que sim, pode vir em versos. Os compartilhamentos, as redes de contatos traçadas por fibras ópticas e wi-fi já tiraram muito poeta do anonimato. Em um cenário onde a produção e o consumo de conteúdo é constante e globalizado (mesmo que nem sempre de forma positiva), como dizer que o brasileiro não lê?
Mell Renault
            Mas se a ideia é traçar o impossível retrato da poesia contemporânea brasileira, entender o que os poetas estão produzindo e as editoras estão publicando é fundamental. E é aí que o caráter estático do retrato se complica ainda mais. A poeta Mell Renault, que trouxe sua obra à luz por uma pequena editora recém-nascida, acredita na miudez, gosta de trabalhar o pequeno, o micro, sem pretensões de alcançar multidões mas com a intenção única de usar a poesia como sua ferramenta de sobrevivência pessoal e resistência social, mesma lógica de Ingrid Carrafa, em uma icônica frase que resume o sentimento de ambas e de quase todos nós: “a poesia é o respirar na superfície para um afogado”.

Ingrid Carrafa

            Andri Carvão aponta que sua poesia se adapta ao período em que se está vivendo, e isso é também visível no mercado. O destroçamento de uma ideia de nação democrática, a polarização, a banalização do ódio, a precarização do desenvolvimento e a criminalização da pobreza têm servido de vasto material simbólico para a produção poética nacional. O avanço totalitário que atinge a política global é uma ferramenta que afasta a arte de uma função exclusiva de ser bela e se transforma em protesto, em resistência, em um grito de liberdade.
            Não à toa, entre os poetas entrevistados, houve uma maioria de respostas no sentido de um trabalho voltado à denúncia, à revolta. Temas sociais e políticos predominam entre eles. Já entre os editores, surpreendentemente, as poesias românticas ou de sofrimento pessoal foram muito citadas como tema recorrente, para desgosto de alguns, que enxergam a urgência da arte de protesto no momento atual do país.
            O movimento que se vê, entretanto, leva a crer que ainda acontecerá um aumento no número de poetas e obras poéticas dedicadas à política, ao protesto. Os slams, as competições de rima, a chegada dos saraus nas periferias e a chegada dos poetas periféricos aos eventos antes elitizados demonstram com força esse movimento, de suma importância para a cultura nacional.
Delalves Costa
            As ações no sentido da declamação inflamada, de denúncia social, foram citadas por vários dos entrevistados, demonstrando que esse movimento está sendo sim percebido, e valorizado. Esse movimento é também o resgate da tradição oral, que parecia estar se perdendo com as novas gerações. O poeta Delalves Costa, por exemplo, se disse profundamente influenciado pelo avô que, analfabeto, era reconhecido por contar causos de forma rimada entre amigos e vizinhos. Sem saber escrever uma palavra, o Sr. Fermínio José Alves era poeta.
Eduardo Lacerda
Editora Patuá
            Da mesma forma, Eduardo Lacerda pontuou que não podemos ser hipócritas de negar que o mercado ainda é dominado pela ideia de que o bom escritor é o homem branco, heterossexual, classe média e residente do sudeste ou sul do país. Essa realidade, conforme aponta Larissa Mundim, começa a mudar com o fortalecimento das editoras independentes, que abriram as portas para a diversidade. Eduardo afirma que “temos que lembrar dos saraus, dos slams, dos cordéis, dos clubes de leitura. A leitura é uma forma de resistência, nós gostamos de ler, os brasileiros gostam de literatura, só muita gente não teve acesso ainda, mas terá, faremos ter”.
Angel Cabeza
            A grande questão quando se fala sobre poesia contemporânea brasileira é que não existe uma verdade única, um retrato estático. O poeta Angel Cabeza pontua isso quando aponta que existe “uma briga ideológica e intelectual entre autores, como se cada um guardasse uma verdade. Parece que todos possuem um manual de como obter sucesso. ‘A poesia deve ser isso’, ‘a poesia deve ser aquilo...’, ‘é preciso escrever assim’. Só que esquecem que não existe uma verdade para o poema, apenas matéria bruta em lapidação”.
            Talvez eu cometa um equívoco em dizer que a poesia brasileira nunca foi tão diversa, mas não erro em dizer que ela o é. Sua expressão é mutável, existem poetas espalhados por literalmente o país inteiro, muitos ainda anônimos por diversos motivos, cada um exprimindo seus temas de ordem particular ou coletiva, e produzindo muito, incessantemente; assim como frequentemente abrem novas editoras que podem contribuir ainda mais para que a poesia brasileira contemporânea não tenha um retrato, mas um filme inteiro, um longa-metragem, uma série.
            O que é mais relevante aos autores e editores nesse momento já não são as brigas de ego que sabemos que acontecem, ou os debates infrutíferos, mas o que estamos fazendo para manter a poesia viva, atuante e cada vez mais acessível. Nada, nesse momento, é mais importante do que resistir.

Agradecimentos

Editores:
Eduardo Lacerda (Patuá)
Larissa Mundim (Nega Lilu)
Marcelo Nocelli (Reformartório)
Nathan Magalhães (Moinhos)
Tonho França e Wilson Gorj (Penalux)
Wallison Gontijo (Impressões de Minas)

Poetas:
Andri Carvão
Angel Cabeza
Delalves Costa
Emely Polli
Ingrid Carrafa
Maílson Furtado Viana
Mell Renault
Nay de Lucena

Um agradecimentos aos amigos e conhecidos que indicaram editores e poetas para essa reportagem.

Maya Falks é escritora, poeta, publicitária e jornalista. Idealizadora e resenhista do projeto Bibliofilia Cotidiana. Essa é sua primeira reportagem oficialmente como jornalista graduada.




segunda-feira, 26 de agosto de 2019

Enterrando Suzana

Logo depois que lancei meu último livro, vi o anúncio do lançamento de Um Enterro para Suzana, de Paula Bajer. O livro imediatamente me conquistou por ter sido diagramado com um formato de revista, maior do que o tamanho tradicional de um livro e com pequenos resumos de outro contros na capa, exatamente como uma revista de fofoca.


Comprei na pré-venda e me apaixonei pelo livro, de deixar exposto no quarto. Mas demorei um bom tempo pra ler.

Bom... esses tempos um autor me contatou interessado em me enviar o livro dele para resenha e questionou que no blog só tinha resenha positiva. Expliquei a ele que, além da sorte que tive até aquele momento de ler apenas livros de que realmente gostei, ainda queria fazer desse espaço um lugar positivo, demonstrando as potencialidades das obras resenhadas mesmo que tenha encontrado problemas em algumas. Até porque problemas praticamente todas as obras têm e a leitura é muito subjetiva, muito particular, o que me agrada não necessariamente vai agradar o outro.

Não vou jamais chegar aqui e dizer que um livro é ruim porque não gostei dele. Não apenas não sou autoridade no assunto como não é nem coerente sentenciar um livro porque ele não me tocou ou agradou quando pode tê-lo feito com outros leitores.

Comecei a ler o livro com uma boa dose de otimismo porque gosto de histórias com toque policial e não leio nenhum livro do gênero há milênios (tem um na fila das resenhas, por sinal). Meu primeiro choque foi a minha sensação de que o conto que nomeia o livro foi interrompido no meio.

Me agradou que Paula tenha usado a mesma técnica que Thiago Medeiros ao dividir o conto em diversas pequenas histórias conectadas entre si, como capítulos de um romance, mas quando vi o conto terminar, sob a minha ótima, abruptamente, fiquei surpresa. Lembrei das obras tanto de Thiago (que inesperadamente retomou um de seus contos posteriormente) e de Lilia Guerra, que ao longo de sua obra contou duas grandes narrativas separadas, como se dois romances se misturassem.

No caso de Thiago havia uma maior independência dos contos que tiveram continuação. No caso da Lilia, minha única observação foi que alguns dos contos não tinham fechamento para que fossem continuados posteriormente, sendo muito capítulos do que contos de fato, mas todas as histórias tiveram seu arco concluído até o final da obra.

Em Um Enterro para Suzana, quando terminei de ler o conto, depois da sensação de estranhamento por me parecer que o conto foi interrompido no meio, imaginei que fosse o mesmo estilo adotado por Lilia, que mais tarde viria o conto que encerraria o arco. Não veio.

Fiz observações ao longo dos contos do livro, concluindo que, por exemplo, o conto "A carta de Glória" também foi interrompido antes de uma conclusão, porém, a história me forneceu elementos o bastante para que o fim me fosse claro, mesmo que não redigido em sua integridade. Foi um conto que gostei muito. Nessa mesma linha está o conto "Enquanto os casais namoravam no jardim", que inclusive senti uma conclusão muito bem desenhada, com uma sutileza quase poética, mas cujo arco ficou muito claro pra mim.

Nesse aspecto, o conto "A carteira vermelha" foi o mais concreto, com um final totalmente presente, entretanto, não figura a lista dos contos que mais gostei no livro.

Por outro lado, encontrei muitos elementos de contraposição ao que me incomodou na obra, como o conto "Sílvio, não se esqueça do cacto". Nas minhas anotações, considerei o desfecho atropelado. Isso não foi anotado ali como uma crítica negativa, pelo contrário. Foi a mesma observação que fiz do último conto da obra de Rafaela Tavares: a narrativa estava boa, todos os elementos estavam lá, era um conto que merecia uma atenção a mais, porque o potencial existe.

Já "Meu GPS e o paraíso de Dante" é um conto que precisa ser lido sem pressa, para saborear o exercício psicodélico que Paula nos propõe. É uma experiência e certamente meu conto favorito do livro.

Como disse no início da resenha, não estou aqui para diminuir o trabalho de ninguém, não tenho nem qualificação para tanto. Mas infelizmente, pelo compromisso assumido com os leitores, não posso dizer que gostei do livro por diplomacia, ou por não querer me indispor. Insisto que tudo o que foi dito aqui é a impressão pessoal de alguém que já leu de tudo nessa vida. Cada um na sua subjetividade; não gostei por provavelmente motivos totalmente ligados à minha que podem diferir de leitor para leitor.

Paula é uma escritora que coloca paixão no seu trabalho, disso eu não tenho a menor dúvida. É perceptível que estamos diante de uma autora dedicada, as narrativas em si contém muito elemento positivo que pode conquistar outros leitores. Não aconteceu comigo, e eu lamento ter que dizer isso pela primeira vez desde que estreei o blog.

Entretanto, essa experiência não me desencoraja a ter curiosidade de ler outros trabalhos de Paula, já li livro cujos autores jamais voltarão à minha biblioteca por perceber deles um total desinteresse em suas narrativas. Valorizo quem valoriza seu trabalho, e Paula valoriza. Mesmo que nesse texto eu expresse que "Um enterro para Suzana" não foi de meu agrado, ainda convido os leitores do Bibliofilia Cotidiana para conhecerem a obra. Há um bom público para ela, eu só não pertenço a ele.
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Um enterro para Suzana
Paula Bajer

Patuá: São Paulo, 2019
111 páginas
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Paula Bajer Fernandes publicou os romances Viagem sentimental ao Japão (Apicuri), Nove tiros em Chef Lidu (Editora Circuito, e-galáxia), Feliz aniversário, Sílvia (Editora Patuá), assim como o livro de contos Asfalto (digital, e-galáxia). Publicou contos em Achados e perdidos (RDG e e-book), 50 anos daquele 64 (fanzine, e-book), Serendpt (Livrus) e Sub (Patuá), Eu não sou aqui (Patuá), coletâneas do Coletivo Literário Martelinho de Ouro. É autora, também, de Processo penal e cidadania (Jorge Zahar Editor), atualizado para Punição e Liberdade no Brasil (e-galáxia, digital), assim como de livros e artigos na disciplina do direito.

~Maya

sexta-feira, 23 de agosto de 2019

Miau

Chamaria de golpe do destino a forma como eu e André nos conhecemos. Feira do Livro. Natalia Polesso patrona. Estava eu, como sempre, circulando de banca em banca e indicando meu próprio livro como dica de leitura para desavisados visitantes quando o fiz com um cara alto, com sotaque nordestino, com quem tive uma breve conversa. Não nos apresentamos, nada, cada um seguiu seu caminho.

Dias depois, outro autor nordestino por quem tenho imenso carinho esteve em nossa feira para autografar. Tiago Germano, já o conhecia pelo face e fui prestigiar. Terminada a hora dele na sala de autógrafos, seguimos eu, ele, Debora Ferraz (autora de Enquanto Deus não está olhando), Natalia e sua esposa Daniela (e se tinha mais alguém, me perdoe, eu não lembro) para o café da feira.

Papo vai, papo vem, Tiago reconhece André circulando por ali. Foi então que descobri que o cara alto de sotaque nordestino era o paraibano André Ricardo Aguiar. A partir dali nasceu uma amizade que só cresceu.

Descobri pelas bandas virtuais que André, além de poeta, é o rei do trocadilho. A leitura dos posts dele se tornou obrigatória pra mim porque sempre tem uma pérola. Ele é brilhante nessa arte e já sugeri que faça um compilado para publicação.

Enquanto o livro de ouro dos trocadilhos não sai, André lançou "da existência enquanto gato". Bom, eu sou #teamdog, mas não tenho nada contra gatos, tenho até amigos que são, digo, tem. Fiquei curiosa, claro, vindo do André só podia ter coisa boa. Leitura leve, pra contrastar com o que eu mesma produzo.

O livro, publicado pela Fresta, é 100% artesanal e o nepotismo rolou solto: o gato da capa é do próprio André, o que privou outros gatos da chance de disputar a oportunidade de estampar a capa de um livro. Um absurdo que eu não poderia ignorar nessa resenha, por óbvio.


Mas falando sério. Com surpresa zero, o livro é leve. Tem alguns trocadilhos (o que me deixou super feliz) e poemas que vão do divertido ao lírico, tendo o gato como protagonista.

Um dos poemas que separei para futura declamação, por exemplo, André incorpora o próprio gato, em carta ao dono. Os poemas em geral são despretensiosos, não se pretendem virar um clássico da literatura (o que é um clássico da literatura, afinal?), mas trazem em si o inconfundível charme das ancas de uma gata enquanto esnoba seu humano.

A leitura é leve, gostosa, feita num pulo de gato. Indicada inclusive para quem prefere cães.

Meus poemas favoritos vou deixar pra declamar em vídeo, porque valem à pena.
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da existência enquanto gato
André Ricardo Aguiar

Fresta: Caxias do Sul, 2019
Páginas o bastante pra se divertir num só fôlego
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André Ricardo Aguiar é paraibano de Itabaiana. Poeta e contista, é autor de diversos livros dos gêneros e também um dos grandes nomes da literatura infantil.

~Maya

quarta-feira, 21 de agosto de 2019

Com o dedo no gatilho

Artur é mais do que um poeta: é um entusiasta, incentivador e apaixonado por poesia. Eu já sabia disso muito antes de ter em minhas mão duas de suas obras poéticas, sendo "Pátria A(r)mada" o objeto da presente resenha.



O livro traz o próprio poeta na capa, de punhos cerrados, expressão grave, em pleno ato de declamação. O título em amarelo interrompido por uma letra em verde - justo a que compõe o trocadilho - não é uma escolha em vão.

Artur não está disposto a medir palavras. Brasileiro, patriota, que reconhece na farsa jurídica de 16 o golpe que seria o tempero adicional de uma obra proposta a versar sobre a realidade brasileira de 19. Estamos presos em uma ficção de má qualidade. Artur denuncia sem meias palavras a espécie de país que nos tornamos. Pátria aRmada.

Não é uma obra que denuncia o desejo armamentista que garantiu vitória do atual presidente. Mas uma obra que escancara todos os gatilhos, físicos, imaginários e simbólicos que compõem gradativamente a falência moral e ética de toda uma nação.

"Esperei-te 20 anos / até hoje não vieste à minha porta", encerra o poema 1° de Abril, data em que, no ano de 1964, como uma verdadeira piada batida, sem graça, uma ditadura se apoderou do país sob a promessa de "organizar a casa" e livrar nossa nação de uma imaginária ameaça comunista em somente 2 anos. Foram 21.

Artur sabe do que está falando. Ele viveu isso.

Minha leitura de Pátria A(R)mada foi em voz alta. Certa noite, na companhia de minha mãe, declamei o livro inteiro, sem pausa. O ritmo do trabalho poético de Artur permite tragar seus versos em um só fôlego, declamar como uma legítima canção de revolta e rebeldia.

Há denúncia, há ironia, há beleza. Um livro a ser declamado de punhos cerrados como o fez o poeta na foto que ilustra a capa.

Artur Gomes é a própria poesia.
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Pátria A(r)mada
Artur Gomes

Desconcertos Editora: São Paulo, 2019
81 páginas
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Natural de Campo dos Goytacazes, já nasceu com a poesia correndo nas veias. Poeta, declamador, ator, professor, vencedor de diversos prêmios e produtor cultural, Artur Gomes mescla poesia e teatro em seu trabalho e já andou o país inteiro ministrando oficinas e realizando apresentações.

~Maya

segunda-feira, 19 de agosto de 2019

Gabriela se apresenta

Gabriela me adicionou no face depois de ouvir falar de um dos meus livros. Por ser da minha cidade, quando fui entregar o livro a ela, comentou que também escrevia, assim, timidamente. Não pensei duas vezes: convidei que mandasse material para mostrar pra vocês, por aqui.

Ela mandou.

Sem mais delongas, conheçam o trabalho de Gabriela Mezzomo.

Beatriz

* Texto inspirado na música “Beatriz” de Chico Buarque *

Vem, eu te deixo entrar na minha vida.
Me leva pra andar pela cidade, me mostra cada cheiro e cada canto da tua infância, me faz sentir saudade do menino que não conheci.
Olha pra mim: não quero ser a menina moça triste chorando em um quarto de hotel, nem aquela outra, adulta em um corpo de criança, de vestido preto, espiando a vida da janela de um arranha céu. Era linda a vista, o dia resplandecente: e ela planejando morrer.
Não. Também não quero ser uma estrela. Não quero pintar o rosto, ser outra, ser aplaudida e mais tarde, sozinha no camarim, sem maquiagem, sentir o peso e a solidão de não me reconhecer no espelho. Divina, gritaria alguém na plateia: isso seria o céu?
Seria mentira. Eu quero o contrário.
Quero ser simples,uma mulher comum com quem você vai viver dias comuns, quero que minha presença seja bênção, pois descobri que é isso que significa o meu nome: Beatriz.
E caminhar na beira do mar sentindo o vento no rosto, etérea, leve: sim, quero acreditar em anjos e arcanjos, muito mais do que no inferno que tanto me assustou quando eu era criança .
Vem, fica na minha vida para sempre. Vamos achar graça de coisas bobas, molhar os pés nas poças de água, sentir que flutuamos de felicidade, desenhar com giz na calçada, esquecer que existe o tempo. Será que é loucura?
Vem, eu te levo para sempre comigo, vamos arriscar: porque embora o para sempre seja sempre por um triz e as linhas das nossas mãos possam prenunciar desastres, pode valer a pena.
Sim, é perigoso a gente ser feliz, mas não ser é muito mais.
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Vento de Outono

Sonho sempre com jardins abandonados, ele disse. Estava sentado na poltrona perto da janela, com um cobertor sobre os joelhos. Tão magro, tão frágil: irreconhecível.
Ela, sentada na cama, ainda tentava se recompor do susto. Eu não devia ter vindo, pensou, abaixando a cabeça como uma menina encabulada. Deixou-se levar por seus (confusos) pensamentos, enquanto ele parecia entusiasmado contando detalhes de seu sonho. Se eu não tivesse vindo guardaria dele outra imagem, não essa do rosto pálido, não essa dos bracinhos finos, não essa do cobertor sobre os joelhos, não essa de alguém indo embora cedo demais...Suspirou.
Lembrou do dia em que recebeu a mensagem, um dia qualquer no escritório onde trabalhava. Foi depois do almoço, enquanto lutava contra o sono e contra a vontade de desaparecer para sempre. Foi nesse momento, enquanto lutava para sobreviver a mais um dia, que recebeu a mensagem no celular: preciso ver você mais uma vez. Chegou a comentar com a colega do lado, olha isso, meu ex está muito doente e quer me ver mais uma vez, será que eu vou? Vai pra não ter remorso depois, disse a outra, atarefada, entre papéis e prazos, cálculos e planilhas, prática como ela jamais seria.
Não recusou o convite, e ali estava, na casa dos pais dele, para onde ele tinha
voltado depois que...
- Talvez seja só campo, e não um jardim abandonado, você não acha? - a voz dele ainda era a mesma, tão familiar, como se não fizesse muito tempo que...
Interrompia-se, hesitava diante do horror, da iminência de mais uma despedida.
- Pode ser - ela enfim encarou os olhos castanhos dele. Quando prometera a si mesma não ter mais medo? Talvez naquele dia, há tantos anos, em que tinham resolvido seguir caminhos separados... - Melhor pensar que é só campo, onde a gente pode ser livre - ela sorriu.
- Fica um pouco mais - ele estendeu as mãos trêmulas para que ela as segurasse: desesperado gesto de quem implora para ser resgatado de um pesadelo sem fim.
Segurou- as então por breves instantes, ao mesmo tempo em que dizia que não podia ficar mais: já era quase noite.
Depois, coração acelerado, urgência de quem precisa fugir. Desceu as escadas, despediu-se dos pais dele na sala, fechou o portãozinho enferrujado e parou na calçada para olhar a janela do quarto dele, pequena e triste.
O vento de outono era um sopro?
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Destino?

É estranho pensar que eu nunca teria te encontrado se não tivesse errado o caminho. Eu que desde sempre fugia, desviando do que em ti me perturbava. Teus olhos, teu sorriso, nosso passado.
Assim, piegas, sentimental, fugia e acreditava ser aquele o caminho certo: onde não estavas.
Até que um dia, por cansaço, solidão ou algo além de tudo isso, errei o caminho. E te encontrei ali, esperando. E estranhamente não usei as palavras de sempre, que cena ridícula, bizarra, patética. Não me critiquei por ter errado, não maldisse a vida como costumava fazer.
Pés descalços, livres como só em sonhos conseguimos ser, de mãos dadas seguimos juntos.
Era quase primavera.
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Menina antiga

A casa (que reformaram) guardava segredos.
Caixas no sótão, amarelados álbuns de família.
Qual era o nome dela?
Perguntou alguém, segurando nas mãos a fotografia.
Não sabiam.
Ficou sendo assim: menina antiga.
Perdeu-se no tempo
Com suas tranças
Os olhos azuis
O sapatinho branco
O sorriso tímido.
Ou continua andando pela casa,
Sem que ninguém veja, nem escute?
Sobe as escadas rindo, brinca no jardim.
Às vezes alguém leva um susto, que barulho foi esse,
Deve ser o vento.
Ela observa e sorri sozinha.
A menina que um dia existiu guardava segredos.
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Gabriela Mezzomo nasceu em Caxias do Sul. É psicóloga, mãe da Isabela e do Francisco e desde sempre apaixonada por transformar em palavras a poesia e o mistério da vida.

~Maya

domingo, 18 de agosto de 2019

Sobre estar aqui

Entre todos os autores resenhados por aqui, Marcelo Rubens Paiva é o primeiro que não me conhece, não conhece o Bibliofilia e certamente nem verá essa resenha. Não é o primeiro que não a irá compartilhar, mas inaugura um possível novo segmento do blog: dos autores que não lerão suas resenhas. Esse segmento é uma abertura de portas para, no futuro, começar a resenhar também autores estrangeiros. Por hora, a prioridade ainda são os autores que estão contribuindo com o blog através do envio de seus livros.

Sabia de Marcelo Paiva o básico do básio: autor famoso, encontrou o estrelato nas letras ainda na década de 80. Recentemente, o reencontrei na mídia, não por seu talento inegável, mas pelo ódio bizarro que o eleito presidente de nosso país nutre por sua família a ponto de estraçalhar qualquer decoro de qualquer função pública escarrando no busto do pai de Marcelo, Rubens Paiva.

Foi aí que soube - sim, super alienada eu - que Rubens Paiva foi um deputado federal que teve seu mandato cassado em o golpe de 1964 e desapareceu nas mãos de agentes da ditadura alguns anos depois. Não conhecia a história a fundo, por isso aproveitei uma promoção da TAG e adquiri a obra "Ainda estou aqui".


A obra não é sobre o desaparecimento de Rubens Paiva, mas sim, um livro de memórias de Marcelo tendo como protagonista sua mãe, Eunice Paiva, que faleceu alguns anos depois da conclusão da obra. Marcelo declarou, no material de apoio que a TAG envia junto aos livros, que acreditava que um livro sobre seu pai deveria ser escrito pela mãe, não apenas porque ele era uma criança na ocasião do sequestro de seu pai por agentes do Estado, mas porque ela e sua irmã mais velha também foram detidas com o objetivo único de ampliar o sofrimento à Rubens, para além da própria tortura que, comprovado muitos anos depois, o levou à morte.

Mas Eunice desenvolveu Alzheimer. Sem saber da proximidade do país de um governo que enaltece os horrores vividos por seu pai em sua prisão clandestina, Marcelo resolveu então escrever "Ainda estou aqui". O nome do livro, em primeira visão, faz referência a uma frase dita pela mãe, em seus breves momentos de lucidez, quando a ela se referiam no passado. Não, ela ainda não estava morta. Mas em uma segunda interpretação, "Ainda estou aqui" também faz referência ao pai, cuja prova da morte ficou exclusiva na voz de seus assassinos e em um papel atestando tal fato, fruto de muita luta de Eunice diante de uma justiça lenta, muito lenta. A ossada de Rubens nunca foi localizada, ele jamais pôde enterrar o próprio pai.

O livro é dividido em partes, cuja primeira é 100% focada na infância de Marcelo - e onde cometi meu maior erro. Marcelo conta sua história, sua visão das coisas, enquanto eu esperava relatos mais precisos sobre o trágico destino de seu pai. Nunca foi essa a proposta do livro. O sequestro de Rubens Paiva é parte da história, e não a história.

Mesmo eu caindo no pecado de esperar do livro o que ele não era, nessa primeira parte, ainda fiquei encantada com o poder narrativo de Marcelo. É feio, mas preciso admitir que esse é o primeiro livro dele que leio. 

Ao chegar na parte que eu buscava - detalhes sobre a vida na ditadura sob a ótica de uma criança que viu sua família virar "inimiga da pátria" - senti meu primeiro embrulho no estômago. Nas palavras de Marcelo, "todo mundo que era contra a ditadura era comunista. Todos se tornaram suspeitos, subversivos em potencial. (...) Os comunistas tomariam o poder. Até os não comunistas eram comunistas disfarçados, foram doutrinados, sofreram lavagem cerebral. Muitos que, em 1964, conspiraram com os militares, na missão de impedir que comunistas tomassem o poder e o Brasil se transformasse numa diabólica ditadura do proletariado, perceberam a manobra e foram acusados pelos anticomunistas de ligações com o comunismo".

O embrulho no estômago tem uma razão de ser: nasci 3 anos antes do fim do regime, o que significa que eu mesma não o vivi de fato. Ainda assim, meu posicionamento político já me rendeu diversas vezes o apelido de "comuna" e acusações de que seria eu comunista. O Brasil nunca sofreu de fato uma "ameaça comunista", nem em 1964, nem ao longo de toda a minha vida, que começou em 1982. Ainda assim, o "combate ao comunismo" foi uma das justificativas do golpe de 2016 e base forte nas eleições de 2018. 

O nível de neurose, certamente alimentado por quem sabe que esse risco jamais existiu (em especial depois de 14 anos de esquerda no poder com capitalismo funcionando muito bem), não perde para a neurose dos tempos da ditadura. Voltamos aos tempos em que o menor sinal de descontentamento com o poder vigente já confere a absolutamente qualquer pessoa a alcunha de comunista. Vimos pessoas que atuaram fortemente na queda de Dilma Rousseff e na eleição de Bolsonaro sendo acusadas de serem comunistas por ousarem discordar de uma ou outra decisão do atual presidente.

Não vivi 64, mas quanto mais estudo o movimento político e social que culminou em 21 anos de ditadura, mais percebo que o cenário criado desde a derrota de Aécio Neves, em 2014 é muito parecido. Assustadoramente parecido.

Na obra de Marcelo Paiva, ele cita as aberrações jurídicas promovidas pelo regime para dar um ar de legalidades às barbáries cometidas por opositores - e por opositores, inclua no pacote adolescentes carregando cartolinas, destruídos física e psicologicamente nos porões por pessoas treinadas e com poder de fogo por serem considerados perigosos para o sistema. Bom, não vou entrar em detalhes porque estes são desnecessários, qualquer brasileiro que não esteja fora do planeta nos últimos meses tem acompanhado a revelação de outras aberrações jurídicas criadas para garantir o resultado das eleições presidenciais.

Marcelo, na página 134, questiona: "Quem deu o golpe de 64 pensou mesmo em nos salvar do comunismo?". A resposta, ao meu ver, continua a mesma até hoje, nos fatos que nos cercam hoje.

Embora traga um retrato do Brasil da década de 1970, a obra de Marcelo segue atual. À época a declaração oficial corroborada pela justiça era de que Rubens Paiva teria sido resgatado por guerrilheiros em uma cena de tiroteio digna de cinema. Eunice nunca acreditou. Me admiro se alguém, em qualquer lugar, tenha acreditado em uma história tão cheia de, com o perdão do trocadilho, furos. A farsa foi completamente desmontada anos depois, com a admissão dos próprios envolvidos de que Rubens já estava morto (e provavelmente desovado) na ocasião do suposto resgate.

A própria justiça, ao reconhecer a morte de Paiva, chama a ação militar que culminou na morte do ex-deputado de sequestro, uma vez que não houve pedido de prisão, simplesmente homens armados com fuzis invadiram a casa da família, levaram o pai e mantiveram a família refém, até que levassem a mãe e a irmã mais velha de Marcelo, trancando a residência para impedir a saída dos demais. Só puderam sair de casa depois da chegada de parentes de fora, que tinham uma cópia da chave da casa.

Institucionalmente, a detenção de Rubens Paiva não poderia ter sido mais ilegal. Mesmo em um país onde os direitos civis foram violados pela própria lei através do AI-5, a detenção de Rubens Paiva, bem como sua esposa e filha, foram ações de um grupo criminoso. O Estado teria a obrigação de seguir procedimentos legais mínimos. Isso não aconteceu.

Isso, obviamente, não é exclusividade de um estado de exceção. O próprio autor - se não estiver me confundindo com outros livros lidos anteriormente - compara a detenção e morte de seu pai com o caso que aconteceu com o pedreiro Amarildo, que gerou comoção nacional. Infelizmente não o suficiente para provocar uma mudança no sistema.

Ao finalizar os relatos da sua visão, ainda criança, do que aconteceu com o pai, Marcelo pincela um pouco do que se tornou a vida da família, inimiga da pátria, que viu parte dos amigos desapareceram por medo de se associar a eles, outra parte por não se misturar com "comunistas", que eles não eram.

Posteriormente, Marcelo retorna à Eunice, mulher de garra que virou símbolo na luta das famílias em busca de seus mortos. Talvez toda sua força tenha sido o sacrifício que levou seu cérebro ao colapso. Eunice Paiva peitou autoridades ainda durante o regime, uma coragem de poucos, sendo ela visada como esposa de um "comunista".

"Ainda estou aqui" é um documento histórico de uma importância ímpar. E como eu queria que fosse apenas mais um livro resenhado para esse blog, e não um documento histórico. Menos ainda que seguisse tão atual.
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Ainda estou aqui
Marcelo Rubens Paiva

Alfaguara: Rio de Janeiro, 2015
293 páginas
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Marcelo Rubens Paiva é escritor, dramaturgo e jornalista. Seu primeiro livro, Feliz Ano Velho, foi gigantesco sucesso e o tornou nacionalmente conhecido. Também é autor de outras obras adultas e infantis e é colunista do jornal O Estado de São Paulo.

~Maya

Finaleira

Esse é o último post desse blog. CALMA, NÃO PRECISA DESMAIAR! Não, o Bibliofilia não acabou! O causo é que no finalzinho de outubro, mais...