Quando eu era mais ou menos uma pré-adolescente, comprei um exemplar de
Romeu & Julieta, de Shakespeare, não por interesse na história porque todo mundo conhece a história, mas para levar para a escola e mostrar pra todo mundo que eu lia Shakespeare. O que eu não vi na hora da compra é que o livro veio em formato de roteiro de teatro. Acima de tudo, Shakespeare era dramaturgo, e na época eu sequer sabia que essa palavra existia. Não consegui ler o livro.
Passados uns 25 anos de minha pequena "tragédia" particular, chegou em minhas mãos a obra "Nos países de nomes impronunciáveis", de Paula Autran. Para além de um nome instigante e uma capa espetacular, me deu arrepios ver, logo acima do nome do livro, os dizeres "Coleção Palavras para Teatro". Socorro. Paula Autran é dramaturga, já anunciei o livro dela para resenha no Bibliofilia, e agora?
Bom, entendo vários nadas de dramaturgia, então sou absolutamente incapaz de dizer se o texto que o livro contém é o mesmo trabalhado sobre os palcos ou se foi adaptado para a publicação, só sei que, ao contrário do meu exemplar há décadas doado de
Romeu & Julieta, "Nos países de nomes impronunciáveis" não é apenas fácil de ler: é uma delícia. É importante frisar que, para a análise completa da obra e seus personagens, algumas das diversas revira-voltas serão reveladas. Portanto,
contém spoiler.
O resumo da ópera (ou da peça, no caso) é que temos três mulheres que arrumam as malas e saem de casa, deixando para trás somente uma carta aos que ficaram. A primeira é Kátia, uma jovem que passou a vida trancada em uma casa cheia de cadeados porque a mãe temia que a propriedade fosse invadida por bandidos. A segunda é Ocridalina, uma jovem que sente que precisa viver a liberdade antes de assumir um compromisso concreto com o namorado Henrique, mas principalmente, precisa descobrir a origem de seu nome peculiar. A terceira é Joana, uma mãe que sente que se perdeu de si mesma depois da maternidade embora esteja claro o amor que sente pelo filho.
Cada uma dessas três mulheres, distintas entre si e fugindo de relacionamentos de naturezas tão diferentes, tem motivos fortes para a necessidade que as impele à fuga. Todas as cartas, as primeiras, assumem um tom de desabafo com grande profundidade, como se a autora assumisse integralmente os sentimentos de cada uma delas ao escrever as cartas - e é o que se espera de um bom escritor.
Kátia, ao se despedir da mãe e de sua paranoia, o faz dizendo "eu sou o ladrão que, ao invés de entrar, sai. Assim não te tiro nada, mas te trago, pela ausência". Kátia sentia uma solidão profunda isolada em uma casa transformada em fortaleza, "era eu que ia lá e areava todos aqueles cadeados e tirava o pó das chaves todas". Para além disso, não apena o isolamento causado pela fortaleza, mas também pela ausência da mãe. Relembra Kátia que suas melhores lembranças de infância viveu ao lado da empregada, Maria José, e seus livros de bancas de revistas e novelas mexicanas.
Mais tarde, quando temos um adendo das três cartas, ainda descobrimos que a mãe de Kátia nem sempre se lembrava de pagar o salário da empregada. Kátia se sente dolorida, abandonada como toda criança negligenciada, mas com um agravante: ela sente, pelo foco constante da mãe na manutenção da casa sempre fortemente vedada, que, para a mãe, o bandido imaginário era mais importante do que ela, ou pelo menos era a ele destinada muito mais atenção do que a ela.
Seguimos para a carta desabafo de Ocridalina, "entenda o que as palavras não podem dizer", relata ela ao se revelar oprimida por uma relação que parece estar ficando séria demais para seus desejos de liberdade, em especial sobre um anel que representou um amor desses avassaladores; o anel que pertenceu à mãe de Henrique e seu casamento com o pai do rapaz. "Eu quero entender a coragem que sinto em mim, e que às vezes percebo que te assusta", diz ela, declarando em seguida que se assusta também, mas que precisa, como Cabral, se lançar aos mares. Aqui a referência é justamente sobre sua sabida origem portuguesa.
Ao fim da carta, Ocridalina não deixa dúvidas de que não importa o tamanho do amor, o que ela sente por Henrique não cabe nos limites dos sonhos matrimoniais do rapaz. O que impressiona nessa carta é que, ao ler, a sensação que se tem é que já se tratava de um amor esvaziado, que a fuga de Ocridalina foi, na verdade, uma tentativa de encerrar a relação. Depois da tristeza de Kátia por uma infância de clausura e de negligência da mãe, o sentimento de dor não se repete, o que se percebe aqui é quase uma desculpa para fugir da relação. A diferença entre as narradoras é gritante, são vozes destoantes cujas personalidades são expostas por alguém que tem o domínio na criação de personagens.
A terceira carta, por sua vez, é a que trouxe a maior carga dramática. Joana é mãe, sente-se envergonhada em escrever uma carta de despedida ao filho, como se confessasse um crime. Joana descreve sua despedida como uma "descarta", uma "não-carta". Em dado momento, Joana desabafa: "Você nasceu grande e eu me fiz cada vez menor do teu lado. Você aprendendo a falar e engolindo as minhas palavras".
A carta de Joana carrega em si a maior carga dramática e traz à tona um dos assuntos mais cheios de tabu que a maternidade carrega: a anulação completa de um ser humano ao tornar-se mãe. Joana ama o filho. A dor de partir e deixa-lo para trás é evidente em cada linha e quase nos estapeia as fuças. Eu, que não vivo a experiência da maternidade, pude sentir profundamente a culpa que Joana carrega pela decisão de partir.
Eis que se desdobra um debate importante - e que faz dessa carta um material riquíssimo para análises mais profundas e técnicas para quem estuda e trabalha com os desafios e imposições sociais da maternidade: Paula aqui não mede palavras, nem sobre a anulação de Joana ao se tornar mãe e deixar de ser Joana, nem sobre o quanto essa mulher anulada nutre um amor concreto e inquestionável pelo filho. Cabe múltiplas interpretações, se colocada a carta no nosso contexto social onde a mãe é uma figura de quase sacralidade (ao mesmo tempo que sofre isolamento com a proibição de crianças em vários ambientes e a polêmica sobre amamentação pública, que faz com que muitas mães sejam empurradas para fora do convívio social) e uma mulher é um ser de menor valor diante de seu papel maternal.
Joana, que descobrimos depois ser poliglota e com notável conhecimento em línguas, se sente absolutamente silenciada. "eu aprendi que o silêncio é só a outra face da mesma moeda da fala". O relato de Joana, além de todas as questões sobre maternidade que renderiam uma tese inteira, ainda tem um importante tratado sobre o silêncio. Para ela, buscar o silêncio onde ele é exigido já não lhe basta porque, poliglota, entende que o silêncio dela e de alguém que fala em inglês é idêntico.
O que ela precisa é da incapacidade de se comunicar, um silêncio de incompreensão, para resgatar a si mesma, e, por isso, decide partir para algum país cuja língua lhe seja um completo mistério. Ainda assim, no adendo de sua carta, Joana deixa ao filho, Caio, receita de lasanha de legumes para aproveitar os legumes que estão na geladeira, em uma tentativa de dar ao filho algum tipo de autonomia e a si mesma um pouco de paz.
Findadas as cartas, descobertas nossas viajantes para países de nomes impronunciáveis, vamos recebendo notícias de que fronteiras estão sendo fechadas por motivos diferentes.
Como não há uma narrativa linear por parte de Paula, em uma leitura desatenta é provável que passe despercebido esse detalhe, mas a cada notícia de fechamento de fronteira, temos a carta resposta a cada uma delas, presas em embaixadas de países com nomes impronunciáveis.
Clarice, mãe de Kátia, adquire quase um tom debochado, como se encarasse a atitude da filha como um ato de rebeldia juvenil. Ao contrário da carta de Joana - outra mãe - Clarice zomba, justifica que os cadeados eram mesmo contra ladrões e, como se diz popularmente, "faz pouco caso" do desabafo da filha, que não escondeu seu sofrimento na primeira carta.
Não há como se ter empatia por Clarice. Não há por ela o amor materno que há de Joana por Caio. Por mais que a própria sociedade no leve a entrar na pele de Kátia e sentir com ela o sofrimento do abandono (mesmo que não concreto) que a levou a sair de casa, fica ainda a sugestão de reflexão sobre a anulação completa da mulher que se torna mãe. Clarice é dona de si. O que a torna aqui alvo de crítica - e essa sim, válida - é que Clarice é uma dona de si com ar de arrogância que tentou, inclusive, tirar da filha sua única lembrança boa da infância, e que esquece de pagar o salário da empregada como se a única coisa que realmente importasse, além de si mesma, fosse defender sua propriedade. Mesmo que alegue tentativa de proteger a filha, ali o que vale ainda é a ideia de propriedade.
Depois da próxima notícia que nos situa na prisão de Ocridalina em uma embaixada, a resposta de Henrique muda toda a imagem criada pela carta dela sobre a relação dos dois. Não se trata de uma moça indisposta a se manter na relação dos sonhos do namorado, tradicional, com o anel símbolo do amor eterno e verdadeiro. Henrique tampouco está interessado em uma relação dessa natureza. Inclusive está furioso que Ocridalina deixou a chave com o porteiro.
Nessa segunda carta resposta, nos deparamos com uma história que completa o quadro de uma forma basicamente oposta à esperada pela carta deixada pela moça. Foi um choque me deparar com uma carta seca, com um tom raivoso, e não um namorado choroso implorando pelo retorno da namorada. Uma grata surpresa, aliás, uma quebra completa de expetativa.
Já caio, filho de Joana, se revela um rapaz que, mesmo adulto, se viu completamente perdido com a ausência da mãe, e nos revela surpreso ao ver uma filóloga, "tradutora das Mil e Uma Noites, uma mulher reconhecida e premiada pela potência de sua fala em quase uma dezena de línguas ter sido presa pelo que eles chamaram de: 'falta de comunicação'". As informações reveladas por Caio em sua carta dão uma dimensão ainda maior do drama relatado por Joana em sua despedida. Uma mulher que trabalha, vive e é reconhecida por sua fala sente que perdeu a voz.
Antes de um desfecho - e aqui encerram-se os spoilers - o resto recomendo a leitura do livro porque novas surpresas virão - ainda temos a notícia da abertura das fronteiras com a possibilidade de volta para a casa das três mulheres e os depoimentos de Maria José - empregada de Clarice - Jaílson, o porteiro no prédio de Henrique, e Marcinha, namorada de Caio. A partir daí as cartas são substituídas por bilhetes
A abertura das fronteiras poderia representar, de forma simbólica, um retorno ao ponto de origem sem uma solução concreta dos fatos que levaram as três mulheres a terminar em países de nomes impronunciáveis. Como prometido, encerrados os spoilers, não posso seguir adiante relatando os fatos do livro, então me atenho a uma última análise de tudo o que nos é apresentado nesse pequeno livro.
Temos três mulheres que vivem três tipos de relações arruinadas: a mulher negligenciada pela mãe, a mulher que vive uma relação fracassada com o namorado e a mulher que se percebe completamente anulada em sua relação com o filho. O desfecho da obra, tanto os bilhetes de um lado quanto de outro deixam a falência dessas relações ainda mais nítidas e dramáticas, embora em momento algum a obra apresente um tom lamuriento ou piegas.
Paula Autran nos apresenta um livro que, mesmo com temas tão sérios, é uma leitura leve e cativante, além de escancarar sua imensa habilidade na construção de personalidade dos personagens, já que temos Kátia, Clarice, Ocriadlina, Henrique, Joana, Caio, Maria José, Jaílson e Marcinha não apenas como personagens da trama, mas como narradores, os 6 primeiros de forma mais contundentes e os últimos três de forma mais rápida, nos depoimentos. 6 narradores principais com uma personalidade bem definida não é uma tarefa fácil, exige treino, experiência e trabalho.
Como disse no começo do texto, não sei se o livro está no formato de dramaturgia, mas, mesmo identificado como texto de teatro e mesmo sendo sua autora uma dramaturga, trata-se de uma peça de ficção de indiscutível qualidade. É um livro em formato de bolso, de 87 páginas, inteiro no formato de cartas, bilhetes, depoimentos e pequenas notícias, mas que construiu com maestria três tipos de relações falidas, abrangendo um enorme campo simbólico sobre cada personagem e sua personalidade. É um feito louvável, em especial se fizermos um paralelo entre as duas mães e suas visões sobre a maternidade. Renderia um excelente debate.
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Nos países de nomes impronunciáveis
Paula Autran
Patuá: São Paulo, 2014
87 páginas
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Paula Autran
é mestre (e doutoranda) em artes cênicas pela ECA/USP. É formada em história (USP) e jornalismo (PUC). Tem seis livros publicados, entre eles o livro de poemas Manifesto de mim mesma (editora Patuá). Teve sete peças encenadas. Integrou o Núcleo de Dramaturgia do CPT, de Antunes Filho, e o workshop do Royal Court Theatre. Também ministra aulas de dramaturgia.
~Maya
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